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Você vem até mim com machucados profundos, enraizados e enroscados, cravados no fundo de sua mente, feridas infeccionadas da infância, uma fratura exposta do seu último relacionamento, um vírus de algum transtorno mental que você não conseguiu sanar. Você se deita ao meu lado, esperando cura, esperando uma epifania que transbordaria entre nossos corpos, pelo afeto, carinho ou cuidado.

Então eu passo minhas mãos por seu rosto, suas bochechas e maxilar, seus olhos carregados de dor, suas mãos calejadas pelo trabalho de ser quem é. Num momento de silêncio, me pego afogada em suas dores, mergulhada em um lago espesso e sujo, tentando procurar a raiz do problema. Eu quero te segurar as mãos e te levar para esse lugar que você pensou que eu vivesse, essa paz desconhecida por nós dois, essa terra livre de pesadelos e arrependimentos de mil vidas atrás.

Enquanto eu me olho no reflexo da taça de vinho em sua mão e me lembro que sou construída por experiências desagradáveis, e meu senso de liberdade, minhas qualidades e falhas em minha personalidade dispostas em um gigantesco mosaico, sempre prestes a desabar. Ora forte e cheia de rachaduras, roendo as unhas e chegando atrasada, fumando mais um cigarro e rindo na hora errada.

Você espera um quadro branco em mim, um livro a ser escrito e a coisa certa a ser dita. Alguém que endosse seus atos e te segure a mão. Alguém cuja pele é sempre macia e quente, cujas pernas enlaçam e te levam para outra realidade, onde seus problemas não mais te alcançam, onde o doce e o agradável te encontram a cada esquina. Onde o sexo e o orgasmo te livram de cada sentença. Mas eu não posso te salvar. Lembro de ter chorado na manhã passada, senti essa tristeza profunda, pensei nos meus problemas e eu juro que queria conversar. Mas minhas páginas não estão mais em branco, e meu cérebro pulsa em insegurança e dias ruins, das noites insones, e minha falta de direção, essa procrastinação crônica de deixar absolutamente tudo para depois. Ah, fosse eu essa estátua perfeita, mármore minuciosamente esculpido cujos detalhes perfeitos resistiram ao tempo e a chuva ácida e as garras dessa cidade.

Algo em mim também queria falar sobre as histórias de minhas cicatrizes.

Você toma seu café amargo, bola um cigarro lentamente e olha para o nada, emerso demais em seus próprios problemas, demais até para me notar, esterilizando as feridas, limpando o sangue do carpete que agora está estragado. Respiro fundo, tentando entender porque eu sempre acabo nessa posição: lavando os pés de um falso messias, limpando o sangue de um anti herói de si mesmo.

Mas eu digo isso, eu não posso te salvar. Uma vez arruinei meu próprio carpete, sozinha, fiz uma bagunça tentando costurar as feridas, tentando estancar o sangramento, eu chorei naquele sofá, arrumando minhas mazelas, em alguma outra péssima noite. Não, não que não existam coisas boas em mim também, eu só quero lembrar dessas rachaduras inevitáveis do tempo, esses buracos aqui e ali que arruinam a ideia de perfeição.

Em meus bolsos não há milagres, em meu sorriso, não há nada transcendental. Tropeço nas calçadas e cometo erros, passo da conta e digo a coisa errada. Talvez a coisa mais sincera, a pior verdade, o golpe final. Talvez você me julgaria cruel se me conhecesse de verdade, mas em meu colo não há nada que te cure do seu velho trauma de infância e dos erros que você insiste em cometer. Eu não posso te salvar enquanto vou improvisando pelos dias fazendo o melhor que eu posso e ainda sim me deitando em uma cama de ressentimentos, quase que reabrindo as feridas, antes de adormecer.

Mas eu juro, eu gostaria de ouvir você, talvez eu não teria o conselho certo, e o olhar cheio de doçura, meus lábios já não têm o gosto doce, nem meus olhos carregam aquele brilho romântico que você esperava desde a época da adolescência.

Você fuma um último cigarro antes de dormir, relembrando todas as coisas que poderia ter dito, as vezes que deveria ter ficado quieto e diz para si mesmo que não há mais jeito pra você. Depois, deita a cabeça em minha barriga como uma criança perdida esperando a aprovação dos pais, e um cafuné na cabeça, como um prêmio por apenas aguentar até aqui. Seus olhos se fecham e seu corpo se abre tentando absorver toda a doçura do momento, convertendo-a em energia apenas para aguentar o amanhã. Meu bem, eu não conseguiria te salvar…

Eu sinto o peso de seu corpo e o peso do momento, tentando lembrar que eu ainda existo no meio de tudo. Eu não conseguiria te salvar, nem me moldar atrás das cortinas, amputar meus defeitos e me livrar de todas as partes mais fodidas da minha personalidade que eu juro, eu odeio, mas não poderia viver sem apenas para dizer as palavras certas, a frase bonita, o gesto inspirador. A grande mulher atrás do grande homem. Eu não nasci para essa merda.

Você espera a mulher dos grandes romances, dos filmes do Oscar, aquela que vai arrancar a dor de você com as próprias mãos, a que vai te botar na linha e vai te fazer sentir pela primeira vez em anos o que você achou que significaria estar vivo. Mas eu não poderia te salvar… Enquanto perco a conta de meus defeitos, meus olhos passeiam pelo quarto me lembrando a mim mesma que eu não sou um altar. Meu corpo jamais foi um templo para que os pecadores pudessem aqui se ajoelhar e se aliviar da culpa.

Meu bem, quando a manhã chega e o Sol ilumina a realidade, as marcas na pele e os problemas que jamais foram embora, quando os sonhos evaporam e a claridade chega abrupta pela janela, despertando o sono e despachando o romance, as rezas acabam, os templos se fecham. Com alguma sorte, ainda estamos vivos. E a salvação é um conceito abstrato demais que queima junto do calor da manhã.

nossa música foi a que mais tocou naquela festa. O dono da playlist com certeza sabia o quanto eu já pensei em você nas vezes que ouvi aquela música. Eu sei, agora você está dizendo “o mundo não gira em torno de você” e eu sei, meu bem. é que, como você sabe, eu não acredito em coincidências, há um motivo para cada coisa e naquele dia alguém queria me fazer lembrar de você.

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