#cronista

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Em noites como essa, a mente nunca é confiável. O calor na janela e um baita peso nas costas. A razão vai dançar no telhado do prédio, flertando com o abismo, rindo diante a possível queda.

Brincando entre saudades e o se-eu-tivesse-dito-isso, se-eu-tivesse-feito-aquilo entalados na garganta feito pedaços de comida que descem no lugar errado, mas não engasga e nem mata. A garganta arranha nas possibilidades largadas no caminho.

A confiança senta-se no parapeito da janela, sem medo de estar no quinto andar. Dançando ao som de Isaac Hayes e mexendo a cintura, animada. Disfarçando o medo com inconsequência, sentindo a noite adentrar os poros.

Estou nua em meu quarto, fumando mais um cigarro tentando não me afogar em mais uma dessas noites, a solidão de um sábado, enquanto a mente dança com o diabo.

Insegura de meus adjetivos, eu apenas consigo listar meus defeitos. Confesso que sinto saudades de afetos óbvios demais.

O óbvio me falta.

A consciência se acovarda e se esconde embaixo da cama, enquanto no final da garrafa de vinho, eu esboço um sorriso que de forma alguma é fruto do meu mérito. A razão urra no telhado, de olhos fechados, enquanto se equilibra bem na borda: apenas para sentir alguma coisa.

O que a gente não faz para se sentir vivo? A gente é capaz de morrer por isso.

Noites como essa e os gatos arruaceiros estão revirando as latas de lixo e mãos estão sendo dadas em algum lugar dessa cidade, um orgasmo explode e beijos se desenrolam, enquanto línguas se abraçam.

A solidão come solta. A solidão me devora viva. Mas a confiança finge costume: agora, sem ninguém aqui, tudo fica mais fácil. É fácil ter coragem, quando ela não é necessária. Esses nós na garganta me fazem tossir enquanto a pele quase pinica por um toque quente e um olhar que possa arrebatar certos devaneios inúteis, expurgar certos demônios.

A confiança se abraça, com frio. Do quinto andar, qualquer queda parece um vôo raso. Uma mente transtornada jamais pode vencer a gravidade, mas a razão se perde tentando rodopiar no telhado, querendo tocar o céu, atingir algum paraíso particular. Estender os braços para cima e, pela ilusão de ótica, alcançar as estrelas.

Certas vezes o mundo não precisa fazer nada, sozinho a gente consegue se machucar. E a consciência, amuada, se retrai embaixo da cama, pedindo uma trégua nesta festa rumo a insanidade.

Ah, mas tudo que eu não disse e deixei de fazer, aquilo que me escapou… Eu me perdi nas entrelinhas. O óbvio me falta, mas a masturbação reflexiva que não leva a nada jamais me escapa, eu questiono tudo que eu sou apenas para ser mártir de porra nenhuma.

A mente trabalha e trabalha, minha mente se revira feito um saco na água quente. Meu corpo é gelado, os abraços estão em falta. Tudo vai quarando na madrugada, mergulhando em mim, quase morro afogada.

Lembro que sempre tive uma baixa estima de mim mesma. Veio desde pequena, esse sentimento de não-o-suficiente. Minha memória mais viva disso é ter chorado no banheiro da escola, na sexta série. A sala de aula toda gritou em uníssono meu apelido e eu não aguentei. Me vi quebrando em milhares de pedacinhos e os arrastei até o banheiro, onde eu chorei e me perguntei, pela primeira vez, se eu não era bonita o suficiente. Eu certamente não era igual as outras garotas, bonitinhas, em seus corpos magros, cabelo liso e boa personalidade. Eu era quieta, não sabia me portar, não sabia fazer amigos, não sabia dizer a coisa certa. Eu e minha cara séria, meu jeito aéreo, desajeitado.

Não melhorou muito nos anos seguintes quando eu notara que todas as garotas já tinham beijado, menos eu. Lembro de querer, mas ter medo de rirem da minha cara, de algum menino rir da minha cara por considerar um beijo dele. Lembro que um deles riu, lembro que eu chorei olhando no espelho do quarto. Eu era adolescente, e adolescente geralmente sente essas coisas, esse desalinhamento com o resto do mundo, mas eu já era precoce nesse negócio de sentir e eu sentia que não havia lugar para mim, nem entre aquelas que nem lugar tinham.

Enquanto a de outras garotas queimavam, minha confiança era um vela frágil, resistindo a um terrível vendaval. Ela fraquejava, solitária, em algum canto de minha mente, falhando em esquentar o quarto, meu cérebro.

Na faculdade, pude notar que minha personalidade ficou mais forte, não muito, mas eu já não me sentia tão fraca, não me questionava sobre meu valor diante do espelho. Jurei que iria experimentar de tudo, viver de tudo, eu me achei bonita e lembro de ter pensado que eu poderia tocar, pela primeira vez, esse mar que tanto conseguiu mergulhar, enquanto eu não saía da praia.

Minha confiança, queimou um pouco mais forte, clareou o quarto, esquentou meu corpo, meu cérebro. Eu gostei de mim, até ter adoecido.

E então, o quarto ficou no mais completo breu.

Enquanto meu corpo emagrecia pela falta de apetite e eu recebia esses elogios de como eu estava mais magra e bonita, eu me sentia podre por dentro. A vela que flamejava em meu quarto não mais queimava, sua fumaça serpenteava o ar, procurando uma saída. O cheiro de parafina irradiava até meu olfato e eu me senti triste.

Já no crepúsculo da juventude, quase sendo mulher, eu voltei a me comparar com os outros, seus corpos e desenvoltura. A confiança que funcionava quase como um imã, para que todos os olhassem, me faltava. Eu tinha dificuldades nos bastidores, olhando as personagens principais tomarem conta dos holofotes. Meu corpo deixou de ser o problema, talvez o problema fosse todo o resto e a palavra beleza era um conceito que eu não mais conhecia, e eu confundi desejo com amor, admiração. Mas o desejo se dissipa, evapora, queima, e os velhos vazios só fazem aumentar. Mesmo quando melhorei e o corpo mudou. Entendi os elogios como uma forma de quebrar o silêncio e os carinhos como forma de matar o tédio e eu juro ter tentado gostar de mim como eu queria que os outros gostassem.

Minha vela solitária tornou a se acender, mas tímida, corria sempre o risco de apagar. Meu vendaval  era mais forte que seu calor e as janelas estavam completamente abertas. Minha confiança era tão frágil quanto meu ego, sempre faminto. Minha beleza tão derradeira quanto uma noite qualquer e minha pele carregava essas inseguranças que quase saiam dos poros e, gotejavam, deixando um rastro onde quer que eu fosse.

A única coisa que sempre me senti orgulho de fazer foi escrever, estava cansada de lutar contra meu rosto e corpo, eu queria ser lida, minha voz seria o suficiente, o resto era consequência. Por isso o desejo se tornou tão banal para mim, se eu era bonita, não importava tanto, eu apenas queria ser lida, e eu conseguia queimar toda vez que escrevia, minhas histórias são minhas cinzas, que flamejaram pelas madrugadas, em uma vela solitária que conseguiu resistir a mim mesma.

Chego tarde da noite em casa, as luzes do meu prédio já estão quase todas apagadas, indicando que a maioria já foi dormir. Do portão do condomínio, consigo ver minha janela, com as luzes igualmente apagadas.

Ao fim do estacionamento, que está localizado no meio de dois prédios, existe um parquinho que está aí desde que me mudei para cá. Ele já é bem antigo, e as crianças não brincam nele mais. Suas cores amarelo e vermelha estão opacas e em vários cantos pode-se ver o ferrugem tomando conta. Um dos balanços está quebrado e pequeno escorregador segue por um fio. Eu me dirijo até ele, quando sinto que não quero entrar em casa. Quando sinto que não quero sentir o cheiro do meu espaço, e os móveis dispostos de certa forma. A casa vazia, as paredes sujas. Meu cheiro no meu quarto e a minha cama, que me espera para deitar.

Sento-me em um dos balaços que pode quebrar a qualquer momento, ainda mais com o peso de uma mulher adulta, mas dou de ombros. Às vezes eu tenho pavor de ficar sozinha, pavor de olhar minha casa e sentir que há espaço suficiente para pensar. Tenho pavor de dormir, por isso preciso de auxilio de um remédio. Fechar os olhos, com a cabeça deitada no travesseiro, faz com que lembranças inundem meu cérebro. De olhos fechados tudo parece mais intenso. As lamentações, o peso dos dias, minhas saudades. Eu continuo olhando para o espaço vazio ao meu lado. Eu não funciono bem sozinha. A solidão sempre grita alto demais para mim, não importa o quanto eu tape os ouvidos. Sentada no balanço, eu acendo um cigarro enquanto eu olho para a lua tão cheia e amarela, por entre as árvores. Eu penso que eu não quero subir as escadas. Sentada ali, me sinto confortável balançando, levemente, para frente e para trás.

Eu sou cheia de medos e inseguranças que quase se sobressaem na pele. Nesses momentos, sem ninguém a minha volta, eu assumo que sou frágil. Uma vez me disseram que eu não pareço insegura. Talvez pela forma que converso, talvez pela forma que me porto. Talvez seja as últimas fotos postadas nas rede sociais. Tudo para fingir bem. Me esconder bem. Tudo para não estar sozinha, sentada no velho parquinho do prédio.

Meu cigarro queima rápido demais e não demora a eu jogar a bituca no lixo. A vontade é acender outro. Eu estou fumando demais. Vivo sobre a ajuda de coisas externas. Antidepressivos, controladores de humor, indutores de sono. Cigarro para acordar, depois do café. Cigarro para pensar. Um calmante se eu tiver um crise, cigarros também para aguentar crises. Sexo se estiver me sentindo sozinha. Talvez uma balada. Eu não me basto. Café para acordar e curar a ressaca. Álcool para me divertir, talvez outras drogas, dependendo do tamanho do estrago. Tudo para tentar possuir por mais tempo uma felicidade que nunca foi minha por direito. Terceirizando os serviços que eu deveria fazer por mim mesma.

Tudo que vai contra ao que aprendi na terapia.

Me balanço um pouco mais forte, e o rangido das correntes começa a ecoar por todo o estacionamento. Agora, consigo sentir o vento contra meu rosto e meus cabelos esvoaçarem contra o impacto. Eu queria estar confortável dentro de mim, mas me sinto apertada dentro dessa pele que parece mais uma roupa justa demais. Não é questão de chorar mais, é uma questão de um entorpecimento a longo prazo. Agora estou indo mais rápido, eu quase me sinto tranquila. Quase não penso em mais nada. Quase… Agarrando essa frágil paz pelas mãos.

Naquele sábado eu havia ido para uma balada sozinha pela primeira vez. Verdade seja dita, eu só não queria voltar pra casa, pegar o metrô e olhar pela mesma paisagem e notar aquele sentimento de vazio, feito vespas caminhando em meu estômago, com suas patinhas leves e seus ferrões afiados. Fui sozinha, a vontade era só dançar, ouvir alguma música e dançar até que o corpo todo estivesse suado e eu pudesse de alguma forma me exorcizar na pista de dança.

Já cheguei e comprei uma cerveja, só para não ficar de mãos vazias, já que eu não tinha com quem conversar, se bem que é fácil puxar conversa fiada. Só é cansativo se forçar a isso. Querer parecer que você está fazendo alguma coisa: conversando, beijando, fumando, bebendo. Beber e fumar só trazem malefícios a longo prazo. Dá pra lidar com isso, eu consigo aguentar as consequências. Forçar-se a socializar por outro lado…

Fui para a pista de dança e já tocava uma artista indie de Pernambuco que eu adoro, misturando um eletrônico com uma espécie de sofrência que eu juro, faz todo o sentido ouvir assim, na solidão. Solidão pura, quando você é o único ser em um local que não está com ninguém. Dancei! Dancei por duas horas seguidas misturando cerveja e gin tônica. Saindo, por vezes para o fumódromo e trocando algumas palavras com algumas pessoas, nada interessante. Era algo como piadas sobre o público jovem ou alguém me perguntar meu signo embora eu já esteja na idade de que signo não me importa, mas eu respondo: peixes, ascendente em gêmeos, lua em áries e meu vênus é maravilhoso!!! Áries também. Ai cara eu odeio pessoas de câncer, blá blá blá. Me dou muuuito bem com pessoas de leão, etc.

A cerveja rapidamente ficou quente, e o gelo da gin tônica derretou no copo e tornou o drink aguado. Logo fiquei entediada, em algumas duas horas descobri que não sou uma dessas pessoas que vão em balada sozinhas. Talvez eu não seja uma dessas pessoas que conseguem ir com calma em uma coisa de cada vez, ou esperar a coisa ficar melhor daqui trinta, sessenta, oitenta minutos. Talvez eu apenas não consiga esperar a música ruim do set passar e o próximo DJ ser anunciado. Eu me entedio rápido, eu fico de saco cheio rápido, eu só perdi a paciência.

Talvez, só talvez, essas coisas meio triviais ou têm que ser boas ou não fazem sentido. Eu perco a vontade, o tesão. Falando em tesão… no meio da madrugada resolvi mandar mensagem para um desses caras na lista do whatsapp, gente que eu sei que faria o mesmo comigo, que talvez eu não tenha sentido essa conexão profunda, que talvez me salvassem dali, ou me oferecesse algo melhor pelas próximas horas.

Joguei um verde, disse que a balada estava ruim, mas cara, é caro ir daqui até minha casa de uber, acho que vou ficar aqui nessa tortura pelas próximas horas. O cara pergunta quanto daria um uber e eu digo: é caro. Faço um drama, mas me mantenho engraçada, reclamo um pouco do lugar, mas elogio o som. É só que aqui só tem criança. Ele não demora a oferecer para pagar um uber da balada até sua casa: você pode dormir aqui, se quiser… Mas eu não finjo dúvidas, eu já aceito.  

Não é cansativo, essa insatisfação crônica? Esse vespeiro em algum canto do cérebro que te faz querer pular na próxima cama, usar a primeira droga, se recusar a largar a festa? Eu que o diga…

Chego no prédio e subo o elevador. No caminho, andares acima, tento retocar o batom no espelho e arrumo meus cabelos e me pergunto se estou bonita. Sabe, eu tenho pensado nisso esses dias, na beleza e eu não ando muito feliz comigo, mas eu juro tentar deixar isso em casa, pra ninguém conseguir farejar por aí.

Ele me espera na porta do elevador, sorrindo. Camiseta velha e samba canção. Me dá um abraço apertado, elogia meu cheiro e abre a porta de sua casa para eu entrar.

Sentamos no sofá, enquanto ele me oferece uma cerveja e eu retiro os sapatos que agora me incomodam. Eu o encaro alguns segundos, há um sorriso no canto de seus lábios, talvez esteja com o ego lá em cima: olha só a surpresa dessa madrugada de sexta-feira! Talvez esteja feliz em me ver. Seu sorriso convencido me irrita um pouco, mas eu juro deixar isso pra lá. Não quero analisar demais isso aqui e logo começamos a conversar sobre francamente qualquer coisa, a conversa não é muito profunda e eu me peguei prestando mais atenção na música meio brega que ele colocou pra tocar no spotify. Eu não quero soar escrota, é só… Estou tentando praticar essa coisa nova, de não colocar importância em tudo.

O enxame no meu cérebro começa a zunir novamente. Sinto picadas em meu crânio e algo me diz que o velho tédio está voltando, voltando a formigar no corpo e me fazer duvidar se isso era uma boa ideia, talvez não. Provavelmente eu não voltarei me sentindo muito feliz amanhã.

Mas agora ele diz que está com sono, quer ir pra cama. Eu aceito, e não acharia ruim se apenas dormissemos, talvez fosse até melhor. Talvez fosse mais sábio, mais maduro, menos covarde. Só deitar e dormir, sem transar apenas para matar alguma coisa que segue se movimentando pelo meu corpo. Quando nos deitamos ele me beija pela primeira vez, e sua boca tem gosto de pasta de dente, a minha, provavelmente, de cerveja. Ele rapidamente tira a camiseta que eu havia acabado de colocar. E nada é dito, enquanto ele beija meu corpo e é só aí que eu esqueço que minha mente se comporta como uma colméia em caos.

Enquanto minhas pernas estão entrelaçadas em sua cintura e ele coloca a camisinha, olhando para meu rosto, iluminado pela luz que irradia da janela, eu respiro fundo e fecho os olhos. Seu pau é a droga que faz minha mente sair de sintonia, onde uma tela preta se instala entre eu e meus pensamentos, minhas agonias e angústias e essa vontade visceral de apenas ter algo real nas mãos. Eu quase esqueço quem sou entre os gemidos e as mãos que passeiam entre curvas cabelos, barba, boca. Talvez minha psicóloga tenha razão, eu uso o sexo como válvula de escape. O sexo é intenso e rápido, gozar ou transcender não estava nas expectativas de qualquer forma. Mas minha pele está vermelha e minha mente se acalma.

A putaria logo me faz dormir, mais tranquila. Eu chego a não ter nem pesadelos.

Acordo no outro dia antes dele. Faz um baita Sol lá fora e ele ronca baixinho, apoiando a cabeça em uma das mãos. Me levanto, tomo uma água, me visto e o acordo: dia cheio, preciso ir pra casa. Ele me leva, sonolento até a porta, nos despedimos com um selinho e eu caminho até o metrô. Não sentindo nada, essa falta do sentir quase machuca, quase perfura, mas não chega a tanto. Não sangra, não dói. Só incomoda, é quase um câimbra dos sentidos. Não há música triste de fundo, não há dores para sanar. Só uma ressaca, uma sede, uma fome que não são apenas literais.

Cai logo pra dentro. Levanto a cara e abro a boca, tentando engolir os pingos grossos da chuva. Me desespero um pouco, me vendo sozinha na rua vazia, as pessoas estão dentro de suas casas, esperando a tempestade passar. Eu não quero ter medo de me molhar, ou estragar minhas velhas botas e a maquiagem que agora está borrada.

Sinto que minha consolação é a coragem de ter tentado ainda que nunca de em nada ou que o esforço não pague no final, eu me vejo sozinha na chuva.

Cai logo pra dentro. Essa gana de sentir na pele, a intensidade de apenas querer estar viva, ainda que viver seja bem diferente de apenas existir. Meus olhos ardem com mais uma gota d’água que se mistura com o rímel e irrita minha retina. É tarde demais, eu já estou ensopada, tarde demais para se ponderar se eu deveria ter deixado o guarda-chuva em casa e a velha prudência entediante de antes. Tarde demais para me perguntar se eu deveria ter deixado encostar bem na carne, além da pele, onde mais arde, onde a água bate, e a ferida sente. Tarde demais para fingir que me arrependo.

Não quero me arrepender. Não quero caminhar na rua olhando para trás, me abraçando de frio, me sentindo uma criança boba, emocionada pelo primeiro banho de chuva. A água não faz milagres, a sujeira sempre acaba indo para outro lugar, escondida nos esgotos e empilhada nas poças que se formam no meio da rua. A água não faz milagres, mas eu ainda fecho os olhos, feliz por ter me deixado sentir algo ainda que a brisa gelada faça minha pele urrar em arrepios. Essa não é uma chuva de verão.

Cai logo pra dentro. Essa eterna desilusão com a realidade, nada saiu como eu esperava e eu encontro um conforto nisso, caminhando na rua, esperando que a enxurrada não me leve, mas eu não quero ir contra a corrente, não mais. A chuva é intensa, as árvores quase sucumbem ao vento, o barulho do vendaval chorando sussurros desconexos para mim, e eu apenas quero sorrir pra essa força. Me lembro de quando eu era criança, brincando no quintal de casa, achei graça enfiar minha perna num formigueiro, na pequena moita perto da porta da cozinha. Chorei quando as formigas subiram na perna, picando seu caminho acima, a gente faz essas coisas idiotas pra experimentar, pra sentir como é o barato; e minha mãe veio correndo me acudir, perguntando o motivo de eu ter feito isso. A gente não sabe o motivo pelo que faz nada, a gente só faz. A gente só vive porque quer sentir o que é estar vivo, cai pra dentro essa vontade de me arriscar novamente, por amor, por realização, para me colocar no mundo ainda que o vento abafe mais um grito que escorrega de minha garganta.

Não há pássaros na chuva, nem as pombas sujas da rua, nem os ratos que caminho pela sarjeta. Não há paz virando a esquina, eu não quero ter paz. Eu não quero a tristeza de ter paz, às custas do medo e da eterna pergunta do que seria. Cai logo pra dentro essa vontade de jogar nos braços do impossível ainda que eu dê de cara com o chão, do salto do precipício rumo às pedras na beira da praia. Vejo beleza na coragem da loucura, vejo beleza nas cicatrizes do meu corpo, no grito na hora da raiva, nas unhas cravadas nas costas da intensidade do gozo. Vejo beleza no desastre que se permitiu ser.

Cai logo pra dentro. Essa bagunça que eu sei que me tornei, minha personalidade forte, quase que insuportável, e as manias chatas, a sinceridade de cortar aquele ótimo e superficial clima. Cai logo pra dentro, na boca da alma, na garganta do estômago esse pingo de chuva gelada. Eu caminho no meio da rua, minhas ressalvas se desfazem, o açúcar que esconde o verdadeiro sabor das coisas, se desmancha na chuva. Não quero pensar duas vezes antes de dar o próximo passo, quero a coragem de ser quem eu sou, seja lá que porra isso signifique.

Você vem até mim com machucados profundos, enraizados e enroscados, cravados no fundo de sua mente, feridas infeccionadas da infância, uma fratura exposta do seu último relacionamento, um vírus de algum transtorno mental que você não conseguiu sanar. Você se deita ao meu lado, esperando cura, esperando uma epifania que transbordaria entre nossos corpos, pelo afeto, carinho ou cuidado.

Então eu passo minhas mãos por seu rosto, suas bochechas e maxilar, seus olhos carregados de dor, suas mãos calejadas pelo trabalho de ser quem é. Num momento de silêncio, me pego afogada em suas dores, mergulhada em um lago espesso e sujo, tentando procurar a raiz do problema. Eu quero te segurar as mãos e te levar para esse lugar que você pensou que eu vivesse, essa paz desconhecida por nós dois, essa terra livre de pesadelos e arrependimentos de mil vidas atrás.

Enquanto eu me olho no reflexo da taça de vinho em sua mão e me lembro que sou construída por experiências desagradáveis, e meu senso de liberdade, minhas qualidades e falhas em minha personalidade dispostas em um gigantesco mosaico, sempre prestes a desabar. Ora forte e cheia de rachaduras, roendo as unhas e chegando atrasada, fumando mais um cigarro e rindo na hora errada.

Você espera um quadro branco em mim, um livro a ser escrito e a coisa certa a ser dita. Alguém que endosse seus atos e te segure a mão. Alguém cuja pele é sempre macia e quente, cujas pernas enlaçam e te levam para outra realidade, onde seus problemas não mais te alcançam, onde o doce e o agradável te encontram a cada esquina. Onde o sexo e o orgasmo te livram de cada sentença. Mas eu não posso te salvar. Lembro de ter chorado na manhã passada, senti essa tristeza profunda, pensei nos meus problemas e eu juro que queria conversar. Mas minhas páginas não estão mais em branco, e meu cérebro pulsa em insegurança e dias ruins, das noites insones, e minha falta de direção, essa procrastinação crônica de deixar absolutamente tudo para depois. Ah, fosse eu essa estátua perfeita, mármore minuciosamente esculpido cujos detalhes perfeitos resistiram ao tempo e a chuva ácida e as garras dessa cidade.

Algo em mim também queria falar sobre as histórias de minhas cicatrizes.

Você toma seu café amargo, bola um cigarro lentamente e olha para o nada, emerso demais em seus próprios problemas, demais até para me notar, esterilizando as feridas, limpando o sangue do carpete que agora está estragado. Respiro fundo, tentando entender porque eu sempre acabo nessa posição: lavando os pés de um falso messias, limpando o sangue de um anti herói de si mesmo.

Mas eu digo isso, eu não posso te salvar. Uma vez arruinei meu próprio carpete, sozinha, fiz uma bagunça tentando costurar as feridas, tentando estancar o sangramento, eu chorei naquele sofá, arrumando minhas mazelas, em alguma outra péssima noite. Não, não que não existam coisas boas em mim também, eu só quero lembrar dessas rachaduras inevitáveis do tempo, esses buracos aqui e ali que arruinam a ideia de perfeição.

Em meus bolsos não há milagres, em meu sorriso, não há nada transcendental. Tropeço nas calçadas e cometo erros, passo da conta e digo a coisa errada. Talvez a coisa mais sincera, a pior verdade, o golpe final. Talvez você me julgaria cruel se me conhecesse de verdade, mas em meu colo não há nada que te cure do seu velho trauma de infância e dos erros que você insiste em cometer. Eu não posso te salvar enquanto vou improvisando pelos dias fazendo o melhor que eu posso e ainda sim me deitando em uma cama de ressentimentos, quase que reabrindo as feridas, antes de adormecer.

Mas eu juro, eu gostaria de ouvir você, talvez eu não teria o conselho certo, e o olhar cheio de doçura, meus lábios já não têm o gosto doce, nem meus olhos carregam aquele brilho romântico que você esperava desde a época da adolescência.

Você fuma um último cigarro antes de dormir, relembrando todas as coisas que poderia ter dito, as vezes que deveria ter ficado quieto e diz para si mesmo que não há mais jeito pra você. Depois, deita a cabeça em minha barriga como uma criança perdida esperando a aprovação dos pais, e um cafuné na cabeça, como um prêmio por apenas aguentar até aqui. Seus olhos se fecham e seu corpo se abre tentando absorver toda a doçura do momento, convertendo-a em energia apenas para aguentar o amanhã. Meu bem, eu não conseguiria te salvar…

Eu sinto o peso de seu corpo e o peso do momento, tentando lembrar que eu ainda existo no meio de tudo. Eu não conseguiria te salvar, nem me moldar atrás das cortinas, amputar meus defeitos e me livrar de todas as partes mais fodidas da minha personalidade que eu juro, eu odeio, mas não poderia viver sem apenas para dizer as palavras certas, a frase bonita, o gesto inspirador. A grande mulher atrás do grande homem. Eu não nasci para essa merda.

Você espera a mulher dos grandes romances, dos filmes do Oscar, aquela que vai arrancar a dor de você com as próprias mãos, a que vai te botar na linha e vai te fazer sentir pela primeira vez em anos o que você achou que significaria estar vivo. Mas eu não poderia te salvar… Enquanto perco a conta de meus defeitos, meus olhos passeiam pelo quarto me lembrando a mim mesma que eu não sou um altar. Meu corpo jamais foi um templo para que os pecadores pudessem aqui se ajoelhar e se aliviar da culpa.

Meu bem, quando a manhã chega e o Sol ilumina a realidade, as marcas na pele e os problemas que jamais foram embora, quando os sonhos evaporam e a claridade chega abrupta pela janela, despertando o sono e despachando o romance, as rezas acabam, os templos se fecham. Com alguma sorte, ainda estamos vivos. E a salvação é um conceito abstrato demais que queima junto do calor da manhã.

Me sentei, me sentindo estranha, em um canto da festa. Pensei que essas situações sociais não eram para mim. Eu me sentia ansiosa, batendo as unhas na borda da lata de cerveja quente. Me sentei, sentindo um peso nas costas, o odor do lugar me incomodava. Vislumbrei lembranças incômodas, embaladas pela música animada, o que fez tudo ficar bem pior, me vi então em um filme cult: luzes escuras, cores estranhas um misto de vermelho e roxo e verde, abraçados por uma neblina da fumaça dos tantos cigarros que ali queimavam.

Que me queimavam também.

Senti uma chama se acender em um pequeno canto do meu cérebro. Queimando tímida, irradiando seu pequeno calor e fervendo alguns neurônios cansados. Eu quis fugir da conversa, admito. Queria ficar quieta. Precisava de silêncio para pensar, mas então, tive medo de ir embora e me ver sozinha. Me ver sozinha e ver algo que eu não gostava em mim mesma. Guardei então, essas ânsias, bem dentro de minha traqueia, e as afoguei com mais um gole da cerveja, enterrando-as estômago abaixo, bem onde eu não poderia olhar.

Quis que meus órgãos fossem cúmplices de meu crime.

Esqueci que crise alguma vai embora numa festa.

Fechei os olhos e me balancei ao ritmo da música: para lá e pra cá, titubeando os dedos na lata de cerveja, balançando os pés. Minha mente se movia ao contrário, se rebelando contra a gravidade e indo para o lado oposto, contorcendo-se feito um peixe fora d’água, doido para respirar, vendo seus últimos minutos de vida, na tortura eterna do fim. A eternidade que dura alguns segundos. Mas eu queria sorrir, eu juro. Eu queria dançar e beijar, bem no meio da pista de dança, eu queria ser o próprio carnaval tamanha alegria, mas me sentia feito Quarta-Feira de Cinzas, a ressaca antes mesmo do primeiro gole de álcool.

Esses pensamentos não levam a nada. Para lá e pra cá, tentando entrar no clima, tentando fazer parte do ritual, da dança, do grupo. Tentando me enturmar, ainda que eu me sentisse em uma outra frequência, onde eu não pudesse ser ouvida. Uma outra realidade enxergada através de um vidro. Eu sou espectadora aqui.

Sinto a pele pulsar de agonia, esperando as horas se dobrarem e o dia amanhecer. Esperando que seja apenas a cerveja que não bateu bem, me debatendo junto com os ponteiros do relógio. Sentada em um canto da festa, observando as gargalhadas pairarem pelo ar, feito pássaros pousando nos fios do poste da rua, querendo tocar os próprios fios, e absorver a eletricidade de toda a empolgação.

Me vejo em outro mundo, eu sou de outro mundo: meu planeta está depois de Plutão, tão distante do Sol e do calor dessas coisas corriqueiras.

Acendo um cigarro para me distrair e a fumaça dele se enturma com a outra que já pairava ali. Me sinto invejosa, uma bolha de ressentimentos que eu só destinarei a mim mesma. Meus olhos se fecham, e eu vejo o nada, vejo tudo, vejo o que não queria lembrar, meus pensamentos me enganam, minha mente está tramando contra mim. É só uma bad, é mais que isso. Porra, você vai acabar explodindo assim, menina.

Vai com calma.

Segura a onda, eu lembro de um amigo dizendo. Segura a onda, a bad vai passar. Tudo passa, mas eu ainda penso no peixe se contorcendo fora d’água, pensando na eternidade finita do seu pequeno gigantesco tormento. Guardo certos pensamentos para mim, tento afogá-los de novo com cerveja, tento sufocá-los com o cigarro. Sinto meu corpo se retraindo contra si mesmo. As células de fora, as células da pele, agora querem voltar-se para dentro, escondidas, dentro da casca. Meu corpo é seu refúgio e eu sou aquela que fica para trás.

Penso em amores passados, penso em amizades perdidas, penso nas esperanças que morreram no caminho, padeceram de sede, enquanto eu cruzei esse deserto por anos. Penso nos mistérios dos céus, e do fundo do mar, no sal das lágrimas e do suor, me vejo mergulhando em mim. Embaladas agora por uma música meio agitada, aquele eletrônico triste, feito para agradar pessoas como eu.

Um cruzar de pernas e o olhar desinteressado, disfarçando certas tristezas com tédio, olhando a vida por esse espelho, esperando que os sentidos possam finalmente abraçá-la. Cruzando pela noite meu deserto, procurando o oásis de uma vida despreocupada, de uma noite tranquila. Penso que esperarei o próximo DJ para me levantar e sigo esperando, enquanto a vida passa.

Que eu consiga me perdoar, assim como perdoo os crimes daqueles que não me enxergaram ou respeitaram qualquer coisa que eu senti. Me perdoar completamente, como quando meu próprio amor por mim mesma não foi recíproco, um amor unilateral que não atravessou o reflexo do espelho. Que eu consiga me perdoar, pelo ódio que distribuí em mim mesma. 

Que eu consiga me amar. Essa é a parte mais difícil, me amar e respeitar meu tempo, meus limites. Não, não você não precisa de certas coisas para ser mais valiosa. Repetirei um mantra na frente do espelho do banheiro, embaçado pelo vapor de um banho quente, escaldante que leva embora todas as células mortas e as dúvidas sobre meu valor. Que grite em voz alta dentro do meu próprio cérebro quando eu me ver em uma situação de risco, quando alguém não parecer bom para mim. Nem toda forma de toque é afeto, nem todo mundo faz bem para você. Que eu me perdoe pelas vezes em coloquei meu corpo em risco ou vida em risco apenas para provar que eu podia sentir algo: 

Não é querer estar mais viva se te machucará mais tarde.

Que eu encascore a pele. Que eu tenha orgulho da mulher que eu sou, na frente dos amigos, de homens, da família e também… Na ausência de todos eles. Que eu entenda meu eu todo como uma beleza imperfeita, meu corpo como uma máquina e meu cérebro como um órgão que já mais foram vilões de nada, mas eternos amantes que estarão ao meu lado ainda que a solidão vocalize seu grito mais agudo. 

Que a crueldade do mundo não seja o reflexo para quem eu sou. Que a fragilidade com que me enxergam não impeça de meu emocional crescer forte e saudável, ainda que o mundo espere que eu falhe, ainda que eu falhe, ainda que tudo dê errado, eu espero essa sensação de satisfação percorra meu corpo como o próprio sangue nas veias, batizando cada artéria e abraçando, quente, meu coração no final. 

Que eu consiga me perdoar, e me desfazer da culpa como uma roupa velha, ainda que eu tente a acumulá-la em um cesto no canto da mente: está na hora de limpar a bagunça.

Que eu saiba que sou merecedora de amor, gentileza, respeito e dignidade e que não preciso implorar por nada disso. Que eu nunca me esqueça disso. 

Que eu ame meu corpo, mesmo se outros não amarem. Eles todos irão embora e no silêncio da noite, eu o abraçarei, quente, e ficaremos, sozinhos, envoltos apenas pela escuridão dos céus e uma faísca solitária de alguma estrela que mal consegue brilhar.

Que minha beleza inunde a casa, os recintos que eu entre porque eu não a quero conter dentro de mim. Que eu sempre lute pelo que eu acredito, mas que principalmente, eu acredite em mim mesma. 

Que a mulher que eu sou e que ainda ei de me transformar, não seja quebrada por aqueles cujos egos são frágeis. Que eu não me quebre por eles, ou por quem insiste em dizer que mereço menos seja lá o que for. Quero conservar esse sentimento bom de eterna cura, ainda que eu renasça incontáveis vezes e eu jamais me esqueça que resistir é viver em harmonia nesta pele, que é a vida que me veste.

Saí do metrô correndo, a chuva era torrencial e eu não possuía um guarda-chuva. Pensei em fumar um cigarro enquanto subia sentido a Consolação, mas ele molharia todo. Parei sob o toldo de um boteco podre, logo na esquina da Sete de Abril.

Me sentia um lixo, especialmente naquele dia, eu sentia que as coisas não estavam dando certo de forma alguma, sabe? Sempre me senti meio lixo, meio podre, mas naquele dia… Faltava cair aos pedaços de tão apodrecida por dentro. Como se as pessoas ao meu redor pudessem sentir, pudessem cheirar o cheiro putrefato vindo de minhas entranhas. Como se eu tivesse o toque de Midas ao contrário, transformasse em merda tudo que toco. E chovia, bem naquele dia. Eu não gosto de chuva, particularmente. Quer dizer, a chuva é importante, mas dias chuvosos apenas me dão a impressão de que lavarão toda essa máscara de tranquilidade que eu visto pela manhã. Essa roupagem de: tudo vai ficar bem, olhe pelo lado positivo. Eu até tento, mas no fim eu só finjo para as pessoas, quando eu já deixei de acreditar nisso há um tempo. Eu até dou conselhos para meus amigos: pense pelo lado positivo, querido. No fim das contas a merda emergirá à superfície, com seus raios de má noticias e seu cheiro característico.

Sabe, quando anoitece no centro, eu me sinto solitária. De leste a oeste consigo lembrar onde moram os homens que eu gostei e/ou transei; amigos que eu conversava e já não encontro mais. Sorrisos que eu dei e que já não brilham neste caos. Largo do Arouche, Praça Roosevelt, Cesário, Bar do China… Aquele Ben Hur do lado do Anhangabaú. Eu já estive com pessoas queridas nestes lugares, mas agora sozinha, sinto uma nostalgia danada. Eu sou das que enfiam significado em tudo, sinto demais até que o sentimento tome conta de meu próprio corpo. Até que eu própria suma e apenas o sentimento reste.

Acendi um cigarro, você sabe que fumar na umidade é um saco. Mas este é um vício que eu particularmente gosto. E não sinto vontade de largar. Droga alguma me tomou e me abraçou como  o cigarro, que me permitia expressar prazer, desconforto e distração. Então mesmo em uma chuva desgraçada como essas, eu fumo. Droga, não lembrei do guarda-chuva. São Paulo é bonita na chuva, porque a chuva esvazia os lugares, faz brilhar o asfalto, cai contra a luz do poste e o farol dos carros… Vendo isso, eu esboço um sorriso. Mas logo ele se dissipa, pois, por esvaziar lugares, faz eu me sentir meio solitária. Meio estranha. As pessoas estão em suas casas, com um nível de satisfação um pouquinho maior que o meu. A solidão cresce a ponto de ser maior que eu própria, a sensação de que a vida de todos segue, é tão forte que eu mal posso evita-la, embora eu saiba que é mentira.

Debaixo daquele toldo, eu vejo pessoas indo e vindo. Será que elas conseguem sentir essa tristeza vindo de mim? Será que elas me acham perdida? Uma mulher chama a minha atenção com seu guarda-chuva amarelo. Ela me olha e sorri, me parece alegre e simpática, e eu a invejo. Ela é bonita, tranquila, em meia a chuva. Daquele tipo de felicidade onde se é capaz de sorrir para estranhos… Eu gosto de gente feliz, que esbanja alegria em locais públicos, privadamente, tantas emoções assim, esmagam a gente por dentro. Eu juro, dia desses eu ainda vou ter coragem de sorrir e chorar em público.

Meu cigarro ainda duraria por mais duas ou três tragadas. Gostaria de evaporar junto à fumaça. Mas meus pensamentos me queimam como sua brasa, e eu permaneço largada, como a própria bituca, que jogo no chão e corro em meio a chuva.

Esses devaneios não me levam a nada.

É uma noite quente de verão, algumas estrelas se esforçam muito para aparecer no céu e você até consegue contar algumas. Como o glitter que prega na roupa depois de um baile de carnaval. Aliás, já é quase carnaval e a festa começa a borbulhar na panela com todas os fogos e cores e a alegria, os sorrisos, embora em um lugar ou outro você sinta um velho desconforto. Você não conseguiu jamais batizar-se neste rio de felicidades, neste mar de contentamento. Uma vez, você se pegou chorando durante uma cagada e, sentado na privada, sentiu algo rasgando no peito. Você costumou-se a afogar esses sentimentos na bebida, no sexo e nas drogas, ainda que não surtisse efeito, você apenas achou que valia a pena tentar.

Você não sente? Formigando na pele, coçando feito uma urticária. Mas você parou com a hipocrisia, admitiu certas falhas e o que falta em você e admitir é o primeiro passo. A questão é para onde. Você foi o andarilho sem rumo de sua própria vida, andando em círculos, perseguindo o próprio rabo e apenas cometendo os mesmos erros de novo e de novo. Talvez fosse uma condição intrínseca do ser humano. Mas por quê algumas pessoas parecem sempre estarem melhores que você? Talvez elas finjam muito bem, talvez só sejam melhores mesmo, ou mais maduras. Você sentiu que de alguma forma, era um fantasma assombrando todos os espaços que ocupava, todos as festas e rodas de amigos, bares e consultórios. Assombrando a realidade sem assustar a ninguém, sem ser notado, um sopro no ombro de alguém e só, você estava em outra realidade e portanto, mal conseguia tocar aqueles ao seu redor.

Esse desconforto… Tem dias que vai lhe comer vivo, um parasita vivendo dentro da sua mente se alimentando de tudo que é sentimento bom. Aposto que você se sente novo demais para sentir essas coisas, ainda que essas coisas não tenham idade. Você só é mais sensível…

Olha a casa, o quarto, as paredes sujas e o tédio de uma noite insone e você gostaria de algo intenso e profundo o suficiente para te arrebatar das garras da mesmice. Com frequência, você pensou que merecia ser salvo: um arrebatamento particular. Ta aí, o nome desse texto: você ainda pensa que merece ir para o céu, mesmo que não acredite em Deus. Bom, mas se Deus existir, ele vai conseguir viver com a sua descrença, mas não acreditar em si mesmo… Você conseguiria suportar? Honestamente, você sente que falhou consigo. Você não cuidou do seu corpo, sentimentos, mente. Você meio que foi abusivo para si mesmo, mas ainda procura outras pessoas para culpar. A culpa é uma roupa que só veste melhor os outros.

Mas é uma noite de verão, você senta no banco da praça e acende um cigarro, talvez, beba uma cerveja enquanto sente aquele cheiro do bueiro que está próximo, misturado com o aroma de Damas-da-noite. Incrivelmente, não é desagradável! Esse desconforto tem te seguido a vida toda, será que você não pensou que merecia mais do que merecia de fato? Quer dizer, a gente passa uma vida querendo o que não tem, ou se esforça pouco, olha, não fique para baixo, a vida só piora daqui para frente. O que a gente tem que fazer é encascorar a pele, e você sabe que uma pele calejada só vem depois de muito atrito e dor.  Você pensou que precisava de maturidade emocional e um carinho no rosto. A leve brisa toca sua face gentilmente, realizando um pequeno pedido. Não vá se acostumar, o buraco é mais embaixo.

Fato é que já é fim de ano, e essa época sempre te deixa se sentindo meio bosta. Tem alguma coisa no ar das festividades que faz você lembrar de cada merda que você fez no passado. Se ao menos você pudesse se perdoar, aliviar-se do peso que carrega nas costas, como um mártir de ninguém e nem de você mesmo, um herói jamais reconhecido por façanha alguma além de sofrer pelo que nem aconteceu, mas a ansiedade foi seu calvário e você se pregou em uma cruz. Ah, eles dizem que se amar é fácil. Gostar de si e abraçar seu próprio corpo como o se fosse sua alma gêmea. Mas seu corpo e sua essência são amantes a sua eterna espera. Irão esperar você retornar da guerra consigo mesmo, para que então possa distribuir afeto pela pele e mente, envolvendo todos os órgãos, em um beijo caloroso e um abraço apertado.

O barulho das árvores dançando junto ao vento te levitam e te levam de encontro a melancolia, sua velha amiga. Você pensa que merecia mais de você mesmo e promete mudar no próximo ano, ainda que você tenha a tendência de se esforçar muito pouco em tudo que você se propôs a fazer. Se ao menos alguém te olhasse nos olhos e sussurrasse bem baixo, com a voz aveludada: tá tudo bem.

Será que você acreditaria?

Talvez, você realmente seja sensível demais neste mundo áspero e amargo, talvez você se sinta como as rosas cujas hastes são cortadas todos os dias em um jardim. Talvez você seja isso, uma metáfora brega e (meio que) verdadeira. Esse desconforto segue ao seu lado como um fantasma, de alguma forma você sabe que ele jamais irá embora, você sabe que está em algum limbo. Nem ele nem você serão arrebatados nesta noite, ou noite alguma. A realidade te arranha a pele, pedindo que você a enxergue. Aqui estão todos: a solidão, o desconforto, a realidade, e você, caçando estrelas que já não existem mais.

As duas adentraram na festa, cumprimentaram a todos (ou quase todos), pegaram uma cerveja e sentaram-se no sofá, de canto. A festa estava cheia para o apartamento da anfitriã. Muitos rostos desconhecidos, muita gritaria e gargalhadas pairando no ar, junto do cheiro de cigarro e de maconha. Havia uma pequena neblina no apartamento e todos os rostos estavam sorridentes, no meio da sala, um homem e uma menina dançavam rockabilly estilo Jack Kerouac em On the road. Estavam em silêncio, haviam brigado no caminho para cá, e mal se olhavam na cara.
- Me empresta o isqueiro?
- Tó. - Juliana fez que não falaria mais nada, mas pensou melhor, daria o braço a torcer. - Você tem certeza que está em clima de festa?
- Eu não. Mas eu não quero ficar em casa, olhando pras paredes. O barulho ajuda a mente não pensar mais no problema.
- Esquece esse climão, pelo menos vamos tentar se divertir.
Larissa escorou a cabeça com a mão esquerda, com uma cara de dó, enquanto observava o céu escuro da vista da varanda. Pequenas estrelas brilhavam entre as janelas dos prédios e o céu era um pano negro que cobria São Paulo. Andava meio deprimida, e fazia mais de uma semana que não saída de casa, Juliana a arrastara para lá, para tentar melhorar o humor. Bom, era óbvio que não estava adiantando: não é divertido se divertir quando não se consegue se divertir. Ao seu lado, a amiga balançava timidamente os ombros ao som da música e sua franja balançava de um lado para o outro.
- Se você quiser ir embora, a gente vai, tá bom? Mas quem sabe não ajude mesmo. Dançar é bom para essas coisas.
Por “essas coisas” Juliana queria dizer a fase letárgica que ela estava tendo por esses dias. Ninguém ousava dizer a palavra certa: depressão. Talvez chamar a coisa como ela é, faça com que a coisa seja menos potente, seja opaca diante da realidade. Ela pensava que só precisava aguentar algumas horas, não beberia muito, não usaria outras drogas, talvez tentasse absorver um pouco dessa alegria que pairava sob todas as outras pessoas da festa. Talvez a alegria adentrasse pelas narinas como cheiro da fumaça e assim como fumaça, impregnasse em suas roupas, cabelos e até na própria pele.
Claro, não queria ficar com essa cara de bunda a noite toda, então se esforçava também: mexia os pés com a batida do som, balançava a cabeça enquanto fechava os olhos. Pensou que o som das gargalhadas altas adentrando seus ouvidos, era um pouco agradável. Queria sentir tudo isso. Olhou à sua frente, dois homens se beijavam carinhosamente no meio da sala, bem no meio da pista de dança, bem na hora que as luzes se apagaram e foi ligado um jogo de luzes coloridos que fazia o beijo ter vários tons diferentes de cores primárias.
- Eu ainda me surpreendo com gente que consegue flertar em festas hoje em dia. - Juliana diz, olhando para os dois que dançavam e se beijavam sem cansar.
- Só a ideia de flertar no geral, já me dá preguiça.
- Acho que é porque a gente não está ali no meio.
- Eu sei que eu não sou do tipo que estaria ali no meio. Mas se estivesse não seria pra ficar com ninguém.
- E aquela fase sua? Você direto estava saindo “barra” transando com algum cara…
- Ju, olha essa bagunça toda. - ela apontou para si mesma. - E ainda envolver homem nisso… Não é uma boa. Acho que empapucei. A maioria dos caras são iguais essa festa: você sai esperando um momento de profunda diversão e intimidade e volta sem nada para casa.
- Bom, profunda intimidade e festa muito boa não é fácil de achar. A gente tem que ir em algumas festas ruins e encontros rasos para saber disso.
- Mas não está na cara? Eu sabia, quando saí de casa hoje que não deveria ir a lugar nenhum. Acho que preciso de coisas mais tangíveis, menos passageiras…
- Uma festa não é lugar para isso.
- Eles estão se divertindo.
- Eles não estão se sentindo como você ou estão fingindo muito bem, bicha.
- Você tem essas coisas? Sentir que a alma sua envelheceu demais e tudo isso, que nós jovens deveríamos aproveitar, simplesmente perde o sentido? Eu parei de sair com esses caras porque eu sempre me via voltando para casa meio vazia, e triste ou apenas entorpecida. As poucas vezes que algo ultrapassou a pele não durou mais que algumas semanas. Acho que quero honestidade.
- Você tem alma de artista. Artista tem essa coisa de buscar por algo profundo.
- Mas querer conexões humanas reais não é só coisa de artista.
- Não, mas artista geralmente consegue admitir isso.
- Bom, eu só sei que excluí o tinder.
Juliana se levantou para dançar, bem a frente de sua amiga. Ria enquanto rodopiava e mexia o quadril, ainda segurando a lata de cerveja em uma mão e um cigarro na outra. Mal olhando para as outras pessoas da festa, ela constantemente fazia gestos para que Larissa levantasse do sofá, que negava o tempo inteiro, balançando negativamente, a cabeça. Vendo a amiga dançar, Larissa pensou que certas profundidades estavam agora longe de seu alcance. Todo o resto da festa ficou embaçado atrás da amiga que há dias tentava lhe animar seja lá como for. Sentia que certas urgências da juventude não mais lhe cabia, pelo menos, não neste momento, onde seu espírito parecia ser muito mais velho que o corpo. Como se tentasse, constantemente se encaixar em lugares que não foram feitos para ela. Ainda sim, sorriu ao olhar Juliana, alegre e disposta.
- Viu só? Você sorriu!
- Porque você é otária.
- Querida, certas profundidades estão aqui. - fez um gesto, apontando para as duas. - Acho que a gente quer muito o que a gente não tem. Mas eu sei lá, se o que a gente não tem é necessário.
- Acho que não é. A gente quer mesmo assim. Mas, você tem razão. Fodam-se as festas.
- E os homens.
- E o tinder.
- E a depressão.
- Vamo embora?
- Tem um boteco na esquina que fica aberto até as 3, o litrão é barato.
Certas profundidades estavam longe de seu alcance, outras estavam bem alí.

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