#conto feminista

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Você adora mulheres louca, não é? Dançando despreocupadamente, na pista de dança, com as mãos no quadril, enquanto riem umas para as outras, gritando: “amiga, eu adoro essa música!”. Você adora mulheres que gostam de uma cerveja em um boteco, mulheres sem frescura, que topam de tudo. Que têm assunto para varar a noite naquelas cadeiras de plástico, com aquela cerveja barata, quando o assunto rende e segue suavemente feito nuvens do céu e o próprio céu que se transforma em milhares de tons de azul escuro até clarear gentilmente e ter sua escuridão partida pelos raios de Sol da manhã.

Você simplesmente ama essas mulheres. Mulheres de opinião, que dizem o que sentem, o que querem, o que odeiam. Que pensam, que querem algo maior da vida além da tediosa banalidade e que têm coragem de enfiar a mão mais fundo, porque não há nada mais chato que o superficial. Você simplesmente adora falar sobre o mundo, música, política, filmes e cultura, sobre a sociedade e religião, sobre arte… Falando em arte, você não adora as artistas? As mulheres que escrevem, pintam, e desenham, aquelas que tocam e cantam, que declamam suas poesias ou escrevem timidamente em seus quartos. Mulheres livres, você uma vez disse, mulheres loucas que são verdadeiras. Que sabem se defender, que não respondem a ninguém. Mulheres que parecem um conceito de um filme, aquele tipo artístico, engraçada, complexo, cabelo colorido, tatuagens e personalidade transbordando pra fora. Aquela que vira o rosto para você e num sorriso, te faz ter uma outra percepção de vida, porque elas, sim, seriam alguma coisa como um oráculo, um altar, um templo, uma reza.

Um orgasmo.

Talvez fossem melhores na cama, você pensou. Essa liberdade toda trazia menos timidez, mais desenvoltura. Não existe medo, né? De tentar coisas novas, Esse calor da pele, que chega queimar quando toca, e toda a disponibilidade de não pensar duas vezes antes de fazer algo porque quer. A liberdade que parece ter sido escrita em um livro, a personagem que só existe para libertar o mocinho. Você, um personagem que deveria ser salvo, conhece uma mulher maluca pelas ruas do centro e têm a vida transformada porque ela sabe dizer a coisa certa. E na cama? Ela tem experiência, ela não nega nada, e ela quis cuidar de você.

Você disse que elas são um tesão. Você queria uma mulher de verdade. Uma mulher de verdade do tipo que te olha nos olhos e sorri, fuma um cigarro depois da transa e diz que você é bom demais nisso.

Mas não pra sempre.

Você quis a salvação, o caldo doce da fruta. Você quis dançar com elas nas festas, entrar no meio de seus beijos e talvez, até ler suas histórias, seus poemas, não toda a obra. Você quis a noite de bar, as qualidades que emanam dos poros, as primeiras boas impressões. Primeiras boas impressões, era isso que você queria, nada tão importante, mais como um prólogo de um livro bom pra caramba. Um livro denso pra caramba, longo. Se você ao menos puder catar tudo de bom que ela te oferecer nesse primeiro e único encontro…

Mas você adora mulheres loucas. Essa loucura sexy que te impulsiona a ser um homem melhor, um homem mais culto, mais experiente. Você curte essa selvageria que você nunca pôde domar, não que você tenha tentado e não que seja possível, talvez você não durasse duas semanas. Talvez seja muito para lidar, muito para entender. Você entendeu do jeito que quis: um tesão. Do mesmo jeito que você achou aquelas duas mulheres se beijando no meio da festa. A mulher que se senta com você no boteco e que vem para a sua casa, transar no primeiro encontro. Essas coisas modernas. Essas mulheres que parecem sair de um filme, sabe? Existe alguma coisa de força ou complexidade, algo que você não pôde tocar completamente e que te atraiu, mas você não soube o porquê.

Você disse que gostava de mulheres de verdade, mulheres livres…

Talvez não por muito tempo, só uma noite, a cada quinze semanas. Algumas horas, até a hora do metrô abrir, até a loucura continuar, até a droga continuar fazendo efeito, até que você goze. Até que não seja real demais, sincero demais, profundo demais.

Não que você separe mulheres para transar e casar, é só que você acha mais fácil manter o relacionamento com a sua namorada da adolescência, daquela cidadezinha do interior. É só mais fácil de entender. É mais tangível. Não existem tantas camadas e medos de dizer a coisa errada, de agir de forma equivocada. Você prefere que a mulher ao seu lado concorde com o que você diz, e como age. Você quer que ela te ache tão inteligente, talvez até saia com meninas mais novas. Não é melhor? quando te olham com esse vislumbre de admiração e quando elas pensam: “ele é tão interessante, e curte filmes cults como Clube da Luta e aqueles do Tarantino!”. Você não quer correr o risco de ser um babaca, é melhor não se aproximar demais, não conhecer demais, e só lavar os pés. Você ama, mulheres modernas, mas talvez não dê conta. Talvez não acompanhe o papo que segue com as transformações da noite, talvez o seu papo não dure tantas noites, não sobreviva ao boteco, e seus passos na pista de dança sejam ensaiados demais. Talvez elas notem, talvez olhem para a insegurança escondida embaixo da pele, o ego frágil que soa pelos poros, o sexo breve e triste. Quem sabe elas não estejam rindo de você? Melhor ficar seguro, nas bordas, onde a água toca só os joelhos, nada tão profundo, você quer ter o controle.

Parecia mais um personagem de um filme, né? Essas mulheres malucas, cheias de questões e opiniões, cuja beleza você não soube muito bem explicar, mas estava ali. Um filme cujo mocinha é transformado por essas mulheres. Excêntricas. Exóticas. Livres. Difíceis. Malucas.

Suas histórias tristes talvez não te interessem talvez sejam tristes demais, suas opiniões muito profundas ou talvez você apenas não consiga acompanhar. Você queria ser salvo, sem ter que investir muito, sem ter que doar muito, sem absorver demais. Quase uma terapeuta, quase uma messias. Você adora mulheres loucas, o conceito, a desenvoltura, a complexidade, mas jura sentir um alívio quando elas vão embora pela manhã.

Chovia. Era uma chuva de verão intensa, refrescante e barulhenta. Coloquei um som enquanto pegava a cerveja gelada da geladeira, e dei uma bela golada. Senti o liquido limpando tudo enquanto dançava até meu estômago e me refrescava completamente. A chuva não dava trégua, seu barulho alto ofuscava a música do rádio, que não tinha chances contra o vendaval.

Observei minha casa, silenciosa. As paredes brancas, meio sujas, os móveis e os eletrodomésticos antigos. A goteira no meio da cozinha que ritmica, fazia um barulho ao cair dentro do balde rosa. A mesa da cozinha, meio bamba e suja, cheio de farelos de pão e sujeiras das refeições anteriores. O chão estava sujo, há tempos eu não fazia uma faxina, nem queria. A casa estava podre. Os móveis empoeirados e a cama bagunçada. Já eram quase cinco da tarde e logo eu não estaria sozinha.

Eu acho que subestimei a solidão. Intui, muito cedo, que seria um dos piores sentimentos que eu poderia ter. Fiz de tudo para não estar sozinha: grudei em péssimos amigos para não estar sozinha, frequentei festas horríveis apenas para me sentir acompanhada e me joguei em relacionamentos ruins, urgindo que a solidão não me achasse. Só quando não me vi sozinha mais, entendi o valor da tranquilidade de mim mesma e só. Hoje em dia a solidão era um luxo, que eu jamais poderia ter.

Em cima da estante, havia uma foto do meu casamento. Minha cara alegre, e o sorriso genuíno, inocente. Meu vestido branco de segunda mão e o buquê de rosas vermelhas nas mãos. Meu marido ao meu lado, sorri timidamente com a mão na minha cintura. Ele olha para mim, com o olhar terno. Já eu, olho para a câmera: olha só, eu consegui! Não serei sozinha nunca mais!

Não serei sozinha nunca mais…

“Cuidado com o que deseja.”, minha mãe gostava muito de repetir esse ditado. Tão certo quanto a vida se tornara o oposto daquela foto. A chuva agora se torna mais violenta, trovões estrondam lá fora e um clarão invade a janela. A solidão pode ser bonita, eu admito que estive errada.

Ao lado da foto de casamento, uma foto nossa em um restaurante barato do centro da cidade. Comíamos uma pizza, o garçom gentil, se ofereceu para fotografar. Eu, de boca cheia, esboçava um sorriso tímido. Na mãos, o garfo e faca. Eu olho para câmera, meus olhos, esbanjam alegria. Ele, do outro lado da mesa, com uma cerveja nas mãos e um sorriso aberto, feliz. Essa foi antes do casamento. Ao lado uma foto de minha mãe, antes de falecer, o sorriso nos lábios não condizem com o sentimento dos olhos, mas era a última foto dela viva…

Me sento no sofá com a lata de cerveja nas mãos, a janela da sala está aberta e a cortina dança no ar, enquanto a chuva adentra a casa e vai molhando parcialmente o sofá, meus braços e o chão. Não me importo muito. A solidão está aqui, ao meu lado. Existe uma paz de espírito invadindo meu corpo, mais forte ainda que a cerveja que, rapidamente, vai esquentando. Meus olhos estão focados na foto em cima da TV: estamos na praia, eu estou de vestido branco longo e ele apenas de bermuda azul. Era réveillon, mas eu não pareço tão feliz. Meu sorriso é minúsculo, meu olhar está opaco, ele parece alegre, estava bêbado na hora da foto. Se notar bem, há um hematoma em meu braço esquerdo. O vestido longo não foi uma opção de moda, eu queria esconder certas coisas.

Ele insistiu que a foto era bonita:

“Você está linda! E olha como eu estou feliz ao seu lado. Vai ficar aqui na sala, pra você lembrar como a gente é feliz.”

Ano passado, e eu já sentia saudades de uma solidão da qual eu fugi minha vida toda. Olhe só para mim: vou até o quarto e no espelho grande, na parede, vejo meu reflexo triste. Estou com uma camisola fina, e curta. Meus braços e pernas estão machucados. Os hematomas nos braços são tantos, que já não saio sem mangas compridas. Meu olho está roxo, assim como o canto da boca. Meus lábios meio inchados. Eu pareço um fantasma do que era há alguns anos atrás. O personagem de um mundo paralelo da foto de casamento.

Olhando para o espelho, viro a lata de cerveja e a deixo em cima da cama que, agora com a chuva, está toda molhada.

Não me incomodo em fechar as janelas, nem de fazer o jantar. Pego as malas, e começo a jogar minhas roupas dentro, sem nem dobrar. Os sapatos, as bijuterias, a maquiagem, os shampoos, a foto de minha mãe. Coloco apenas uma capa de chuva, amarela, que costumava ser de minha irmã. Coloco as botas e deixo todo o resto para trás.

Jogo as malas, no meu carro velho e, sem nem fechar as portas da casa, dirijo, rumo a qualquer lugar que não seja ali.

A chuva não pára, e se intensifica. Não demora muito e meu celular começa a tocar, sem parar. É ele. Não quero atender, não posso atender.

O celular agora ofusca o barulho maravilhoso da chuva, droga. Encosto o carro, não há ninguém na rua. Sei que é ele, querendo saber onde estou. “Não vou mais voltar” é o que eu digo, com um alívio tão grande que sinto meu corpo todo estremecer. Olha só você, sendo corajosa pela primeira vez na vida. Vamos, manda ele se foder, joga esse celular pela janela.

Você não merece isso. Aquela foto lá é uma mentira.

Ele diz que me ama. “Não sei viver sem você, neguinha.” Ele faz uma voz de choro. Ele parece desolado. Eu o escuto fechando as janelas, enquanto respira fundo. Aposto que está desesperado. Lembro de minha mãe, já em seus últimos dias no hospital, sorrindo quando me via e depois, seu sorriso morreu quando viu um roxo em meu braço. “Um homem quando descobre que pode pisar em você, jamais sairá de cima e não vai te deixar partir.” Minha mãe morreu de cirrose. Dizia que não se arrependia, ela ria no hospital, brincando que o álcool e a solidão lhe deram mais que qualquer homem podia dar.

Eu também não sabia viver sem ele, eu admito, no telefone. Ouço sua voz ficar mais animada. “Vem pra casa, tudo vai ser diferente.” A chuva aumenta e eu dou uma risada. “Eu não sei viver sem você, mas eu quero aprender, eu juro.” Jogo o celular em uma poça d’água.

O temporal agora desaparece. Minha mãe parece estar ali comigo, seu perfume invade o carro e uma memória do seu abraço me envolve o corpo, cicatrizando feridas que eu nem sabia que tinha.

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