#mulherescontrabolsonaro

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você não encontra um culpado, sabe?
é só… como as coisas se tornam. elas são complexas. são vários fatores embolados, que rolam pela história e desengata nessa merda toda.
existem os culpados de sempre, mas no fim:
eles são tão abstratos, não é? quem são eles?
quem são os vilões? e nós sequer somos mocinhos?
não.
mas eu posso te dizer isso, talvez sejamos vítimas.
e não há nenhum conforto nisso apenas a certeza dolorosa do que se esvai por entre nossos dedos.
nós somos corpos com hemorragia interna, descoberta tarde demais
a gente não sente até não conseguir sequer respirar.
daí você quer avisar as pessoas que elas estão sangrando por dentro
mas elas irão ignorar até que a primeira vertigem lhes acometa
e você vai poder culpá-las? ora, toda hemorragia interna é um conceito abstrato…
até não ser mais.
algo se perde na linguagem, na comunicação, não há união, mas desesperos individualizados.
a verdade é que eu cansei de encontrar o culpado. eu só quero cauterizar a porra da ferida.
alguma coisa precisa mudar, talvez seja mais micro do que qualquer coisa.
talvez a dor seja bem aqui dentro, talvez a inércia contribua um pouco…
é só que… porra, estamos tão cansados.
estou falando de um pequeno abcesso no fundo da garganta, do dente inflamado
a infecção não tratada que só cresce e se espalha
estou falando de negligência
porra, eu estou falando de gente morrendo!
estou falando de um sistema todo se quebrando: de uma falência múltipla dos órgãos.
estou falando desse abcesso enorme na boca do estômago, dessa carne podre.
estou falando de radicalismo.
e a gente já passou do momento de ter medo dessa palavra.
da insurgência, da desobediência… eu não quero ter medo de um caos organizado.
estou falando de arrancar pela raiz, cortar o membro gangrenado.
é isso ou o sangue continua a jorrar.
essa merda toda não é de hoje, é só que agora a infecção desceu da garganta, pela laringe, chegou no estômago, pulmões e fígado. aí, meu bem, aí já era.
a verdade é que estamos na porra da uti e algum carniceiro filho da puta quer desligar os aparelhos, vender nossos órgãos, furar a fila do transplante.
a metáfora ainda persiste, mas não se engane, gente morrer transborda dela.
a metáfora é só um jeito melhor de dizer que estamos fodidos,
um jeito mais bonito, mais palatável.
é só para gente não esquecer que tumores também crescem em silêncio.
bom, parece que o cirurgião chefe desse hospital esqueceu um bisturi em nosso estômago.
agora é tentar não morrer.
agora é lutar por justiça.
justiça…
justiça é um conceito abstrato demais pra gente entender. e só uma forma de dizer que tínhamos que ter o que é nosso por direito. que é nossa obrigação ter!
que é nossa obrigação viver bem.
que essa chaga não deveria continuar crescendo.
que nossas vidas estão em risco, e tem gente por um fio.
talvez aqui as metáforas acabem. um poema não pode seguir por muito tempo.
nem tudo é poesia, isso aqui é só desgraça mesmo.
cortes na aposentadoria não é poesia;
gente preta e favelada morrendo não é poesia;
universidades fechadas não é poesia;
desistir de lutar contra o trabalho escravo não é poesia;
feminicídio não é poesia;
a sangria não para. é interno, mas mata.

Ano passado,
tive medo desse país virar uma ditadura
verdade seja dita, confesso que eu estive errada.
olhei para o passado com medo de se repetir
olhei para o passado, mas ele estava aqui
os métodos são outros, silêncio é uma forma de tortura
não existe doi-codi, não mais levam os jovens
as verdades foram deslegitimadas
ditadura hoje é institucionalizada,
no vazio das palavras, é respaldada
e a bala perdida se encontra,
a polícia, estrategicamente, sempre se engana.
a terra é plana, o nazismo é de esquerda
lutar é terrorismo, mas dê para esse cidadão uma arma!
posicionamento é doutrina
e lá vai mais uma professora presa
por citar a esquerda numa sala de aula
as milícias tomaram o poder
e a verdade, apenas por ser, foi executada.

Não tenho medo de olhar nos olhos
um lapso de sinceridade;
uma fagulha honesta em um momento finito;
uma olhada nos olhos daquelas que
mastigam, famintas, a alma,
nem esconder meu rosto, 
honesto
da vulnerabilidade gozo.

Do prazer;
da dor;
da luta.
A essência que se constrói
destruindo-se todos os dias.
A pele que se encascora com o atrito,
a alma que se alivia com o grito,
e que audácia essa,
a de ousar a gritar.

Não tenho medo de olhar nos olhos
e de assumir o que acredito
nos tempos das mentiras soberanas
a verdade se esconde envergonhada
no fundo do poço,
enterrada em uma vala
depois de resistir dolorosamente
num porão, ao ser torturada.

Não quero ter medo de olhar nos olhos
ainda que sinceridades sejam subestimadas:
vão lhe chamar de mal amada
justamente, por se amar demais,
por aguentar nas barricadas.
Quando por ódio lhe tiram a vida
justificando o crime, dizendo que te amava.

Um corpo
não é só um corpo.
Um corpo, um sujeito.
Se você acreditar em alma
tem isso também.
Meu eu jamais indefeso.

Não tenho medo de olhar nos olhos
do algoz do outro lado 
quero me manter de pé cheia de raízes no chão, 
espalhadas por todos os lados, impossível de ser 
arrancada 
e, sempre de pé,
impossível de me apagar, 
você arrancará uma, e outra vem em meu lugar.

Quero meu cérebro pegando fogo,
olhando nos olhos, a sinceridade pulsante
batendo tão rápido feito o coração
bombeando a raiva, construindo a força.
Despida do medo, eu quero ser livre,
despida de todo o medo, vejo a coragem, crua
Banhando meu corpo, nas águas da resistência
de mãos dadas com a verdade, nua.

Rezo ao tempo, deus soberano que nos lembra que o fim
é o único vislumbre que teremos da eternidade.
Rezo ao ano que passou, mas que jamais morrerá na memória
daqueles cuja pele encascorou pelo atrito.
E as bombas de gás lacrimogêneo.
Sinto a alma amargurada, não por mim,
mas a chaga coletiva que cresce embora
saibamos que o tempo nunca volta atrás.
E disseram que agora voltamos para décadas passadas…
O tempo aparece para revelar uma cruel verdade:
a história é cíclica, mas ele seguirá em frente,
nos arrastando junto com o passar das horas, e dos dias…
Nos afastando cada vez mais do ano que passou
ainda que o som do metal de suas correntes
ecoem pelos ares e então, verdade seja dita:
não é aqui que morre 2018.
Tatuado em nossa pele como uma dor coletiva,
e que vontade de chorar!
Caminharei pelos espaços no assombro de que não estamos seguros.
Abraçarei meus amigos e prometo não paralisar em nome da injustiça.
Rezo ao tempo, deus inconsciente de si mesmo
que apenas nos tira e nos toma.
Onde a morte, ironicamente, simboliza o pequeno precioso presente
que temos.
Mas a morte está mais próxima de uns que de outros,
os rodeando como a brisa gélida
de um inverno inevitável,
soprando em nossos corpos trêmulos os fantasmas do passado.
A morte que visita a quem luta pelo que acredita.
Então o tempo, em mais um truque,
nos crava na memória aqueles cujos nomes
não podemos nos dar o luxo de esquecer:
Marielle morreu pelo que acreditava;
Bolsonaro, pelo ódio, subiu ao poder.
Soberano tempo,
que não se divide pela volta que a Terra faz em torno do Sol,
a vida é a mesma, as dores também,
se a chaga dói mais em alguns,
quero nunca conseguir virar a cara,
ainda que a ignorância me pareça menos dolorosa
e hoje, eu duvide que seja uma benção,
quando a dor de alguns, é uma ferida toda nossa.
2018 que, eu gostaria de deixar numa vala,
sussurrará os nomes daqueles mortos pela polícia,
e de quem foi assassinado na Paulista,
segurando a mão do homem que amava.
Poderoso tempo, aqui estamos a sua mercê,
o passar das horas, e a permanência das opressões
quando a História permanece a mesma
o que você poderia fazer?
Rezo ao tempo que nos dê força
para olhar para o trás e se inspirar
em quem lutou por um tempo melhor,
em quem amou tanto que precisou ter ódio,
em quem resiste por ser quem é.
Onde o tempo nada apaga, mas segue.
e na rua gritaremos seus nomes, nos livros leremos suas histórias
e não arredaremos os pés dos espaços!
2018 agora abraça outros anos
esperando jamais ser esquecido, mas lembrado
sussurra baixo, inaudível ao som da música,
das bombas, e da porra do Hino Nacional
sussurra até entre os discursos dos fascistas
entre Mourões, Dórias e Bolsonaros
o que o tempo nunca nos fará esquecer, sussurra delicado:
porque a luta se faz presente quando na memória há o passado.

Chovia. Era uma chuva de verão intensa, refrescante e barulhenta. Coloquei um som enquanto pegava a cerveja gelada da geladeira, e dei uma bela golada. Senti o liquido limpando tudo enquanto dançava até meu estômago e me refrescava completamente. A chuva não dava trégua, seu barulho alto ofuscava a música do rádio, que não tinha chances contra o vendaval.

Observei minha casa, silenciosa. As paredes brancas, meio sujas, os móveis e os eletrodomésticos antigos. A goteira no meio da cozinha que ritmica, fazia um barulho ao cair dentro do balde rosa. A mesa da cozinha, meio bamba e suja, cheio de farelos de pão e sujeiras das refeições anteriores. O chão estava sujo, há tempos eu não fazia uma faxina, nem queria. A casa estava podre. Os móveis empoeirados e a cama bagunçada. Já eram quase cinco da tarde e logo eu não estaria sozinha.

Eu acho que subestimei a solidão. Intui, muito cedo, que seria um dos piores sentimentos que eu poderia ter. Fiz de tudo para não estar sozinha: grudei em péssimos amigos para não estar sozinha, frequentei festas horríveis apenas para me sentir acompanhada e me joguei em relacionamentos ruins, urgindo que a solidão não me achasse. Só quando não me vi sozinha mais, entendi o valor da tranquilidade de mim mesma e só. Hoje em dia a solidão era um luxo, que eu jamais poderia ter.

Em cima da estante, havia uma foto do meu casamento. Minha cara alegre, e o sorriso genuíno, inocente. Meu vestido branco de segunda mão e o buquê de rosas vermelhas nas mãos. Meu marido ao meu lado, sorri timidamente com a mão na minha cintura. Ele olha para mim, com o olhar terno. Já eu, olho para a câmera: olha só, eu consegui! Não serei sozinha nunca mais!

Não serei sozinha nunca mais…

“Cuidado com o que deseja.”, minha mãe gostava muito de repetir esse ditado. Tão certo quanto a vida se tornara o oposto daquela foto. A chuva agora se torna mais violenta, trovões estrondam lá fora e um clarão invade a janela. A solidão pode ser bonita, eu admito que estive errada.

Ao lado da foto de casamento, uma foto nossa em um restaurante barato do centro da cidade. Comíamos uma pizza, o garçom gentil, se ofereceu para fotografar. Eu, de boca cheia, esboçava um sorriso tímido. Na mãos, o garfo e faca. Eu olho para câmera, meus olhos, esbanjam alegria. Ele, do outro lado da mesa, com uma cerveja nas mãos e um sorriso aberto, feliz. Essa foi antes do casamento. Ao lado uma foto de minha mãe, antes de falecer, o sorriso nos lábios não condizem com o sentimento dos olhos, mas era a última foto dela viva…

Me sento no sofá com a lata de cerveja nas mãos, a janela da sala está aberta e a cortina dança no ar, enquanto a chuva adentra a casa e vai molhando parcialmente o sofá, meus braços e o chão. Não me importo muito. A solidão está aqui, ao meu lado. Existe uma paz de espírito invadindo meu corpo, mais forte ainda que a cerveja que, rapidamente, vai esquentando. Meus olhos estão focados na foto em cima da TV: estamos na praia, eu estou de vestido branco longo e ele apenas de bermuda azul. Era réveillon, mas eu não pareço tão feliz. Meu sorriso é minúsculo, meu olhar está opaco, ele parece alegre, estava bêbado na hora da foto. Se notar bem, há um hematoma em meu braço esquerdo. O vestido longo não foi uma opção de moda, eu queria esconder certas coisas.

Ele insistiu que a foto era bonita:

“Você está linda! E olha como eu estou feliz ao seu lado. Vai ficar aqui na sala, pra você lembrar como a gente é feliz.”

Ano passado, e eu já sentia saudades de uma solidão da qual eu fugi minha vida toda. Olhe só para mim: vou até o quarto e no espelho grande, na parede, vejo meu reflexo triste. Estou com uma camisola fina, e curta. Meus braços e pernas estão machucados. Os hematomas nos braços são tantos, que já não saio sem mangas compridas. Meu olho está roxo, assim como o canto da boca. Meus lábios meio inchados. Eu pareço um fantasma do que era há alguns anos atrás. O personagem de um mundo paralelo da foto de casamento.

Olhando para o espelho, viro a lata de cerveja e a deixo em cima da cama que, agora com a chuva, está toda molhada.

Não me incomodo em fechar as janelas, nem de fazer o jantar. Pego as malas, e começo a jogar minhas roupas dentro, sem nem dobrar. Os sapatos, as bijuterias, a maquiagem, os shampoos, a foto de minha mãe. Coloco apenas uma capa de chuva, amarela, que costumava ser de minha irmã. Coloco as botas e deixo todo o resto para trás.

Jogo as malas, no meu carro velho e, sem nem fechar as portas da casa, dirijo, rumo a qualquer lugar que não seja ali.

A chuva não pára, e se intensifica. Não demora muito e meu celular começa a tocar, sem parar. É ele. Não quero atender, não posso atender.

O celular agora ofusca o barulho maravilhoso da chuva, droga. Encosto o carro, não há ninguém na rua. Sei que é ele, querendo saber onde estou. “Não vou mais voltar” é o que eu digo, com um alívio tão grande que sinto meu corpo todo estremecer. Olha só você, sendo corajosa pela primeira vez na vida. Vamos, manda ele se foder, joga esse celular pela janela.

Você não merece isso. Aquela foto lá é uma mentira.

Ele diz que me ama. “Não sei viver sem você, neguinha.” Ele faz uma voz de choro. Ele parece desolado. Eu o escuto fechando as janelas, enquanto respira fundo. Aposto que está desesperado. Lembro de minha mãe, já em seus últimos dias no hospital, sorrindo quando me via e depois, seu sorriso morreu quando viu um roxo em meu braço. “Um homem quando descobre que pode pisar em você, jamais sairá de cima e não vai te deixar partir.” Minha mãe morreu de cirrose. Dizia que não se arrependia, ela ria no hospital, brincando que o álcool e a solidão lhe deram mais que qualquer homem podia dar.

Eu também não sabia viver sem ele, eu admito, no telefone. Ouço sua voz ficar mais animada. “Vem pra casa, tudo vai ser diferente.” A chuva aumenta e eu dou uma risada. “Eu não sei viver sem você, mas eu quero aprender, eu juro.” Jogo o celular em uma poça d’água.

O temporal agora desaparece. Minha mãe parece estar ali comigo, seu perfume invade o carro e uma memória do seu abraço me envolve o corpo, cicatrizando feridas que eu nem sabia que tinha.

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