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Rezo ao tempo, deus soberano que nos lembra que o fim
é o único vislumbre que teremos da eternidade.
Rezo ao ano que passou, mas que jamais morrerá na memória
daqueles cuja pele encascorou pelo atrito.
E as bombas de gás lacrimogêneo.
Sinto a alma amargurada, não por mim,
mas a chaga coletiva que cresce embora
saibamos que o tempo nunca volta atrás.
E disseram que agora voltamos para décadas passadas…
O tempo aparece para revelar uma cruel verdade:
a história é cíclica, mas ele seguirá em frente,
nos arrastando junto com o passar das horas, e dos dias…
Nos afastando cada vez mais do ano que passou
ainda que o som do metal de suas correntes
ecoem pelos ares e então, verdade seja dita:
não é aqui que morre 2018.
Tatuado em nossa pele como uma dor coletiva,
e que vontade de chorar!
Caminharei pelos espaços no assombro de que não estamos seguros.
Abraçarei meus amigos e prometo não paralisar em nome da injustiça.
Rezo ao tempo, deus inconsciente de si mesmo
que apenas nos tira e nos toma.
Onde a morte, ironicamente, simboliza o pequeno precioso presente
que temos.
Mas a morte está mais próxima de uns que de outros,
os rodeando como a brisa gélida
de um inverno inevitável,
soprando em nossos corpos trêmulos os fantasmas do passado.
A morte que visita a quem luta pelo que acredita.
Então o tempo, em mais um truque,
nos crava na memória aqueles cujos nomes
não podemos nos dar o luxo de esquecer:
Marielle morreu pelo que acreditava;
Bolsonaro, pelo ódio, subiu ao poder.
Soberano tempo,
que não se divide pela volta que a Terra faz em torno do Sol,
a vida é a mesma, as dores também,
se a chaga dói mais em alguns,
quero nunca conseguir virar a cara,
ainda que a ignorância me pareça menos dolorosa
e hoje, eu duvide que seja uma benção,
quando a dor de alguns, é uma ferida toda nossa.
2018 que, eu gostaria de deixar numa vala,
sussurrará os nomes daqueles mortos pela polícia,
e de quem foi assassinado na Paulista,
segurando a mão do homem que amava.
Poderoso tempo, aqui estamos a sua mercê,
o passar das horas, e a permanência das opressões
quando a História permanece a mesma
o que você poderia fazer?
Rezo ao tempo que nos dê força
para olhar para o trás e se inspirar
em quem lutou por um tempo melhor,
em quem amou tanto que precisou ter ódio,
em quem resiste por ser quem é.
Onde o tempo nada apaga, mas segue.
e na rua gritaremos seus nomes, nos livros leremos suas histórias
e não arredaremos os pés dos espaços!
2018 agora abraça outros anos
esperando jamais ser esquecido, mas lembrado
sussurra baixo, inaudível ao som da música,
das bombas, e da porra do Hino Nacional
sussurra até entre os discursos dos fascistas
entre Mourões, Dórias e Bolsonaros
o que o tempo nunca nos fará esquecer, sussurra delicado:
porque a luta se faz presente quando na memória há o passado.

Chovia. Era uma chuva de verão intensa, refrescante e barulhenta. Coloquei um som enquanto pegava a cerveja gelada da geladeira, e dei uma bela golada. Senti o liquido limpando tudo enquanto dançava até meu estômago e me refrescava completamente. A chuva não dava trégua, seu barulho alto ofuscava a música do rádio, que não tinha chances contra o vendaval.

Observei minha casa, silenciosa. As paredes brancas, meio sujas, os móveis e os eletrodomésticos antigos. A goteira no meio da cozinha que ritmica, fazia um barulho ao cair dentro do balde rosa. A mesa da cozinha, meio bamba e suja, cheio de farelos de pão e sujeiras das refeições anteriores. O chão estava sujo, há tempos eu não fazia uma faxina, nem queria. A casa estava podre. Os móveis empoeirados e a cama bagunçada. Já eram quase cinco da tarde e logo eu não estaria sozinha.

Eu acho que subestimei a solidão. Intui, muito cedo, que seria um dos piores sentimentos que eu poderia ter. Fiz de tudo para não estar sozinha: grudei em péssimos amigos para não estar sozinha, frequentei festas horríveis apenas para me sentir acompanhada e me joguei em relacionamentos ruins, urgindo que a solidão não me achasse. Só quando não me vi sozinha mais, entendi o valor da tranquilidade de mim mesma e só. Hoje em dia a solidão era um luxo, que eu jamais poderia ter.

Em cima da estante, havia uma foto do meu casamento. Minha cara alegre, e o sorriso genuíno, inocente. Meu vestido branco de segunda mão e o buquê de rosas vermelhas nas mãos. Meu marido ao meu lado, sorri timidamente com a mão na minha cintura. Ele olha para mim, com o olhar terno. Já eu, olho para a câmera: olha só, eu consegui! Não serei sozinha nunca mais!

Não serei sozinha nunca mais…

“Cuidado com o que deseja.”, minha mãe gostava muito de repetir esse ditado. Tão certo quanto a vida se tornara o oposto daquela foto. A chuva agora se torna mais violenta, trovões estrondam lá fora e um clarão invade a janela. A solidão pode ser bonita, eu admito que estive errada.

Ao lado da foto de casamento, uma foto nossa em um restaurante barato do centro da cidade. Comíamos uma pizza, o garçom gentil, se ofereceu para fotografar. Eu, de boca cheia, esboçava um sorriso tímido. Na mãos, o garfo e faca. Eu olho para câmera, meus olhos, esbanjam alegria. Ele, do outro lado da mesa, com uma cerveja nas mãos e um sorriso aberto, feliz. Essa foi antes do casamento. Ao lado uma foto de minha mãe, antes de falecer, o sorriso nos lábios não condizem com o sentimento dos olhos, mas era a última foto dela viva…

Me sento no sofá com a lata de cerveja nas mãos, a janela da sala está aberta e a cortina dança no ar, enquanto a chuva adentra a casa e vai molhando parcialmente o sofá, meus braços e o chão. Não me importo muito. A solidão está aqui, ao meu lado. Existe uma paz de espírito invadindo meu corpo, mais forte ainda que a cerveja que, rapidamente, vai esquentando. Meus olhos estão focados na foto em cima da TV: estamos na praia, eu estou de vestido branco longo e ele apenas de bermuda azul. Era réveillon, mas eu não pareço tão feliz. Meu sorriso é minúsculo, meu olhar está opaco, ele parece alegre, estava bêbado na hora da foto. Se notar bem, há um hematoma em meu braço esquerdo. O vestido longo não foi uma opção de moda, eu queria esconder certas coisas.

Ele insistiu que a foto era bonita:

“Você está linda! E olha como eu estou feliz ao seu lado. Vai ficar aqui na sala, pra você lembrar como a gente é feliz.”

Ano passado, e eu já sentia saudades de uma solidão da qual eu fugi minha vida toda. Olhe só para mim: vou até o quarto e no espelho grande, na parede, vejo meu reflexo triste. Estou com uma camisola fina, e curta. Meus braços e pernas estão machucados. Os hematomas nos braços são tantos, que já não saio sem mangas compridas. Meu olho está roxo, assim como o canto da boca. Meus lábios meio inchados. Eu pareço um fantasma do que era há alguns anos atrás. O personagem de um mundo paralelo da foto de casamento.

Olhando para o espelho, viro a lata de cerveja e a deixo em cima da cama que, agora com a chuva, está toda molhada.

Não me incomodo em fechar as janelas, nem de fazer o jantar. Pego as malas, e começo a jogar minhas roupas dentro, sem nem dobrar. Os sapatos, as bijuterias, a maquiagem, os shampoos, a foto de minha mãe. Coloco apenas uma capa de chuva, amarela, que costumava ser de minha irmã. Coloco as botas e deixo todo o resto para trás.

Jogo as malas, no meu carro velho e, sem nem fechar as portas da casa, dirijo, rumo a qualquer lugar que não seja ali.

A chuva não pára, e se intensifica. Não demora muito e meu celular começa a tocar, sem parar. É ele. Não quero atender, não posso atender.

O celular agora ofusca o barulho maravilhoso da chuva, droga. Encosto o carro, não há ninguém na rua. Sei que é ele, querendo saber onde estou. “Não vou mais voltar” é o que eu digo, com um alívio tão grande que sinto meu corpo todo estremecer. Olha só você, sendo corajosa pela primeira vez na vida. Vamos, manda ele se foder, joga esse celular pela janela.

Você não merece isso. Aquela foto lá é uma mentira.

Ele diz que me ama. “Não sei viver sem você, neguinha.” Ele faz uma voz de choro. Ele parece desolado. Eu o escuto fechando as janelas, enquanto respira fundo. Aposto que está desesperado. Lembro de minha mãe, já em seus últimos dias no hospital, sorrindo quando me via e depois, seu sorriso morreu quando viu um roxo em meu braço. “Um homem quando descobre que pode pisar em você, jamais sairá de cima e não vai te deixar partir.” Minha mãe morreu de cirrose. Dizia que não se arrependia, ela ria no hospital, brincando que o álcool e a solidão lhe deram mais que qualquer homem podia dar.

Eu também não sabia viver sem ele, eu admito, no telefone. Ouço sua voz ficar mais animada. “Vem pra casa, tudo vai ser diferente.” A chuva aumenta e eu dou uma risada. “Eu não sei viver sem você, mas eu quero aprender, eu juro.” Jogo o celular em uma poça d’água.

O temporal agora desaparece. Minha mãe parece estar ali comigo, seu perfume invade o carro e uma memória do seu abraço me envolve o corpo, cicatrizando feridas que eu nem sabia que tinha.

É uma noite quente de verão, algumas estrelas se esforçam muito para aparecer no céu e você até consegue contar algumas. Como o glitter que prega na roupa depois de um baile de carnaval. Aliás, já é quase carnaval e a festa começa a borbulhar na panela com todas os fogos e cores e a alegria, os sorrisos, embora em um lugar ou outro você sinta um velho desconforto. Você não conseguiu jamais batizar-se neste rio de felicidades, neste mar de contentamento. Uma vez, você se pegou chorando durante uma cagada e, sentado na privada, sentiu algo rasgando no peito. Você costumou-se a afogar esses sentimentos na bebida, no sexo e nas drogas, ainda que não surtisse efeito, você apenas achou que valia a pena tentar.

Você não sente? Formigando na pele, coçando feito uma urticária. Mas você parou com a hipocrisia, admitiu certas falhas e o que falta em você e admitir é o primeiro passo. A questão é para onde. Você foi o andarilho sem rumo de sua própria vida, andando em círculos, perseguindo o próprio rabo e apenas cometendo os mesmos erros de novo e de novo. Talvez fosse uma condição intrínseca do ser humano. Mas por quê algumas pessoas parecem sempre estarem melhores que você? Talvez elas finjam muito bem, talvez só sejam melhores mesmo, ou mais maduras. Você sentiu que de alguma forma, era um fantasma assombrando todos os espaços que ocupava, todos as festas e rodas de amigos, bares e consultórios. Assombrando a realidade sem assustar a ninguém, sem ser notado, um sopro no ombro de alguém e só, você estava em outra realidade e portanto, mal conseguia tocar aqueles ao seu redor.

Esse desconforto… Tem dias que vai lhe comer vivo, um parasita vivendo dentro da sua mente se alimentando de tudo que é sentimento bom. Aposto que você se sente novo demais para sentir essas coisas, ainda que essas coisas não tenham idade. Você só é mais sensível…

Olha a casa, o quarto, as paredes sujas e o tédio de uma noite insone e você gostaria de algo intenso e profundo o suficiente para te arrebatar das garras da mesmice. Com frequência, você pensou que merecia ser salvo: um arrebatamento particular. Ta aí, o nome desse texto: você ainda pensa que merece ir para o céu, mesmo que não acredite em Deus. Bom, mas se Deus existir, ele vai conseguir viver com a sua descrença, mas não acreditar em si mesmo… Você conseguiria suportar? Honestamente, você sente que falhou consigo. Você não cuidou do seu corpo, sentimentos, mente. Você meio que foi abusivo para si mesmo, mas ainda procura outras pessoas para culpar. A culpa é uma roupa que só veste melhor os outros.

Mas é uma noite de verão, você senta no banco da praça e acende um cigarro, talvez, beba uma cerveja enquanto sente aquele cheiro do bueiro que está próximo, misturado com o aroma de Damas-da-noite. Incrivelmente, não é desagradável! Esse desconforto tem te seguido a vida toda, será que você não pensou que merecia mais do que merecia de fato? Quer dizer, a gente passa uma vida querendo o que não tem, ou se esforça pouco, olha, não fique para baixo, a vida só piora daqui para frente. O que a gente tem que fazer é encascorar a pele, e você sabe que uma pele calejada só vem depois de muito atrito e dor.  Você pensou que precisava de maturidade emocional e um carinho no rosto. A leve brisa toca sua face gentilmente, realizando um pequeno pedido. Não vá se acostumar, o buraco é mais embaixo.

Fato é que já é fim de ano, e essa época sempre te deixa se sentindo meio bosta. Tem alguma coisa no ar das festividades que faz você lembrar de cada merda que você fez no passado. Se ao menos você pudesse se perdoar, aliviar-se do peso que carrega nas costas, como um mártir de ninguém e nem de você mesmo, um herói jamais reconhecido por façanha alguma além de sofrer pelo que nem aconteceu, mas a ansiedade foi seu calvário e você se pregou em uma cruz. Ah, eles dizem que se amar é fácil. Gostar de si e abraçar seu próprio corpo como o se fosse sua alma gêmea. Mas seu corpo e sua essência são amantes a sua eterna espera. Irão esperar você retornar da guerra consigo mesmo, para que então possa distribuir afeto pela pele e mente, envolvendo todos os órgãos, em um beijo caloroso e um abraço apertado.

O barulho das árvores dançando junto ao vento te levitam e te levam de encontro a melancolia, sua velha amiga. Você pensa que merecia mais de você mesmo e promete mudar no próximo ano, ainda que você tenha a tendência de se esforçar muito pouco em tudo que você se propôs a fazer. Se ao menos alguém te olhasse nos olhos e sussurrasse bem baixo, com a voz aveludada: tá tudo bem.

Será que você acreditaria?

Talvez, você realmente seja sensível demais neste mundo áspero e amargo, talvez você se sinta como as rosas cujas hastes são cortadas todos os dias em um jardim. Talvez você seja isso, uma metáfora brega e (meio que) verdadeira. Esse desconforto segue ao seu lado como um fantasma, de alguma forma você sabe que ele jamais irá embora, você sabe que está em algum limbo. Nem ele nem você serão arrebatados nesta noite, ou noite alguma. A realidade te arranha a pele, pedindo que você a enxergue. Aqui estão todos: a solidão, o desconforto, a realidade, e você, caçando estrelas que já não existem mais.

As duas adentraram na festa, cumprimentaram a todos (ou quase todos), pegaram uma cerveja e sentaram-se no sofá, de canto. A festa estava cheia para o apartamento da anfitriã. Muitos rostos desconhecidos, muita gritaria e gargalhadas pairando no ar, junto do cheiro de cigarro e de maconha. Havia uma pequena neblina no apartamento e todos os rostos estavam sorridentes, no meio da sala, um homem e uma menina dançavam rockabilly estilo Jack Kerouac em On the road. Estavam em silêncio, haviam brigado no caminho para cá, e mal se olhavam na cara.
- Me empresta o isqueiro?
- Tó. - Juliana fez que não falaria mais nada, mas pensou melhor, daria o braço a torcer. - Você tem certeza que está em clima de festa?
- Eu não. Mas eu não quero ficar em casa, olhando pras paredes. O barulho ajuda a mente não pensar mais no problema.
- Esquece esse climão, pelo menos vamos tentar se divertir.
Larissa escorou a cabeça com a mão esquerda, com uma cara de dó, enquanto observava o céu escuro da vista da varanda. Pequenas estrelas brilhavam entre as janelas dos prédios e o céu era um pano negro que cobria São Paulo. Andava meio deprimida, e fazia mais de uma semana que não saída de casa, Juliana a arrastara para lá, para tentar melhorar o humor. Bom, era óbvio que não estava adiantando: não é divertido se divertir quando não se consegue se divertir. Ao seu lado, a amiga balançava timidamente os ombros ao som da música e sua franja balançava de um lado para o outro.
- Se você quiser ir embora, a gente vai, tá bom? Mas quem sabe não ajude mesmo. Dançar é bom para essas coisas.
Por “essas coisas” Juliana queria dizer a fase letárgica que ela estava tendo por esses dias. Ninguém ousava dizer a palavra certa: depressão. Talvez chamar a coisa como ela é, faça com que a coisa seja menos potente, seja opaca diante da realidade. Ela pensava que só precisava aguentar algumas horas, não beberia muito, não usaria outras drogas, talvez tentasse absorver um pouco dessa alegria que pairava sob todas as outras pessoas da festa. Talvez a alegria adentrasse pelas narinas como cheiro da fumaça e assim como fumaça, impregnasse em suas roupas, cabelos e até na própria pele.
Claro, não queria ficar com essa cara de bunda a noite toda, então se esforçava também: mexia os pés com a batida do som, balançava a cabeça enquanto fechava os olhos. Pensou que o som das gargalhadas altas adentrando seus ouvidos, era um pouco agradável. Queria sentir tudo isso. Olhou à sua frente, dois homens se beijavam carinhosamente no meio da sala, bem no meio da pista de dança, bem na hora que as luzes se apagaram e foi ligado um jogo de luzes coloridos que fazia o beijo ter vários tons diferentes de cores primárias.
- Eu ainda me surpreendo com gente que consegue flertar em festas hoje em dia. - Juliana diz, olhando para os dois que dançavam e se beijavam sem cansar.
- Só a ideia de flertar no geral, já me dá preguiça.
- Acho que é porque a gente não está ali no meio.
- Eu sei que eu não sou do tipo que estaria ali no meio. Mas se estivesse não seria pra ficar com ninguém.
- E aquela fase sua? Você direto estava saindo “barra” transando com algum cara…
- Ju, olha essa bagunça toda. - ela apontou para si mesma. - E ainda envolver homem nisso… Não é uma boa. Acho que empapucei. A maioria dos caras são iguais essa festa: você sai esperando um momento de profunda diversão e intimidade e volta sem nada para casa.
- Bom, profunda intimidade e festa muito boa não é fácil de achar. A gente tem que ir em algumas festas ruins e encontros rasos para saber disso.
- Mas não está na cara? Eu sabia, quando saí de casa hoje que não deveria ir a lugar nenhum. Acho que preciso de coisas mais tangíveis, menos passageiras…
- Uma festa não é lugar para isso.
- Eles estão se divertindo.
- Eles não estão se sentindo como você ou estão fingindo muito bem, bicha.
- Você tem essas coisas? Sentir que a alma sua envelheceu demais e tudo isso, que nós jovens deveríamos aproveitar, simplesmente perde o sentido? Eu parei de sair com esses caras porque eu sempre me via voltando para casa meio vazia, e triste ou apenas entorpecida. As poucas vezes que algo ultrapassou a pele não durou mais que algumas semanas. Acho que quero honestidade.
- Você tem alma de artista. Artista tem essa coisa de buscar por algo profundo.
- Mas querer conexões humanas reais não é só coisa de artista.
- Não, mas artista geralmente consegue admitir isso.
- Bom, eu só sei que excluí o tinder.
Juliana se levantou para dançar, bem a frente de sua amiga. Ria enquanto rodopiava e mexia o quadril, ainda segurando a lata de cerveja em uma mão e um cigarro na outra. Mal olhando para as outras pessoas da festa, ela constantemente fazia gestos para que Larissa levantasse do sofá, que negava o tempo inteiro, balançando negativamente, a cabeça. Vendo a amiga dançar, Larissa pensou que certas profundidades estavam agora longe de seu alcance. Todo o resto da festa ficou embaçado atrás da amiga que há dias tentava lhe animar seja lá como for. Sentia que certas urgências da juventude não mais lhe cabia, pelo menos, não neste momento, onde seu espírito parecia ser muito mais velho que o corpo. Como se tentasse, constantemente se encaixar em lugares que não foram feitos para ela. Ainda sim, sorriu ao olhar Juliana, alegre e disposta.
- Viu só? Você sorriu!
- Porque você é otária.
- Querida, certas profundidades estão aqui. - fez um gesto, apontando para as duas. - Acho que a gente quer muito o que a gente não tem. Mas eu sei lá, se o que a gente não tem é necessário.
- Acho que não é. A gente quer mesmo assim. Mas, você tem razão. Fodam-se as festas.
- E os homens.
- E o tinder.
- E a depressão.
- Vamo embora?
- Tem um boteco na esquina que fica aberto até as 3, o litrão é barato.
Certas profundidades estavam longe de seu alcance, outras estavam bem alí.

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