#pequenopoeta

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A realidade é algo que acontece na fração de um milésimo de segundo, depois me escapa. Minhas mãos quase agarram o presente pelos cabelos, mas ele foge. Na memória, tudo vira uma narrativa quase abstrata demais, sonhos acordados, vontades torpes, desejos latentes. O tempo brinca comigo e até ri do desespero, do meu desespero por algo tangível. 

Estou voltando para casa depois de uma dessas noitadas. Eu não sei se tenho mais idade para essas coisas, ainda que eu seja nova, talvez eu esteja cansada, tão cansada que sinto cada órgão meu ofegar, quase sinto suas mãos calejadas. Caminho pelas ruas do centro da cidade, vazias, frias, o vento quase se faz inaudível, de tão forte, folhas de jornais, papéis, sacolas, se fazem notar ao dançar no ar pela força do vento. Caminho pelas ruas do centro e ainda está escuro, o silêncio ainda reina, peçonhento. Em meus bolsos, ainda está o ingresso do show em que eu estava, o lugar lotado, a música alta, a alegria plástica, as risadas e conversas pairando no ar junto da fumaça. 

O silêncio agora abafa as memórias agitadas, expulsando-as do recinto. Eu nunca me senti íntima do que se entende por realidade, pelo presente, pelo que se segura nas mãos e se entende por real. Caminho sozinha pelas ruas do centro de madrugada, e cada vazio se acumula em meus olhos, jogando toda a alegria anterior da noite para longe. Todas as risadas agora estão distantes, a música é inaudível, as conversas foram abafadas, tudo evapora numa hora dessas. Eu, que nunca soube lidar com o fim das coisas, me sinto em um luto constante, procuro, a todo momento, ressuscitar cadáveres do passado, memórias de tempos melhores, que agora, são uma espécie de narrativa, uma versão minha, romantizando tudo que vivi apenas para negar o meu agora. 

A minha mente vai criando versões melhoradas do que vivi, fazendo com que eu fique embalada em uma melodia nostálgica de dias que nem foram tão melhores. 

Nem tudo faz sentido na realidade, os elementos não estão aí para ser decifrados (nem todos, pelo menos), as coisas apenas são e eu, querendo que tudo fizesse sentido, procurei refúgio nas memórias decodificadas, as versões melhoradas, o passado maquiado, me aninhei na mulher que eu era, em épocas mais simples, menos fodidas, mais rasas. A realidade é algo que acontece enquanto eu olho para trás, sorrindo para o passado. 

Caminhando pelas ruas do centro, rumo ao metrô que ainda nem abriu, eu passo por ruas mal cheirosas, monumentos pixados, moradores de rua que tentam dormir nesse frio, caminho por bêbados e prostitutas, lojas fechadas… Caminho por tudo que é agora e já não é mais tanta coisa, caminho pelo silêncio e seu breve reinado, que se dissipará junto da névoa da madrugada. E o tempo só passa… O relógio caminha, impossível de andar para trás, as horas correm, tudo tem pressa pelo agora e pelo que está por vir. As narrativas criadas na mente, romantizadas e jamais confiáveis, talvez o motivo seja o fato de eu não possuir nada nas mãos, alguma coisa, sabe. 

Em meus bolsos estão os ingressos de mais cedo, um isqueiro que não mais funciona, tampas de garrafas, em meus bolsos está meu relógio parado. A realidade é algo que acontece enquanto checo meus bolsos, procurando moedas, enquanto checo se meu isqueiro ainda funciona. Enquanto estou torpe, sonhando acordada, buscando na memória um conforto para o agora, um afago de fantasmas. O tempo brinca comigo, e eu penso que sou uma piada, numa hora dessas, uma piada até engraçada. Tento voltar no tempo ao fechar os olhos, mas encontro lembranças borradas, confusas que me fizeram chegar até aqui. Quando chego até o metrô, que ainda não abriu, percebo que não arredei o pé do lugar, que não viajei para outra época, outros dias, outra vida. A realidade é esta aqui e queima as retinas quando ela me olhos nos olhos, que machuca quando me diz que não há para onde eu fugir. 

Nem tudo existe para fazer sentido, a realidade é o silêncio da madrugada, é a brisa gélida correndo pelo meu corpo, são meus bolsos cheios de objetos inúteis, é o tempo que eu vou esperar para poder embarcar, são todas as memórias emaranhadas. A realidade é as ruas vazias, as tristezas da cidade, é minha pequena embriaguez, minha vontade por um cigarro entre os dedos, a realidade é que meus cigarros acabaram. Entre um cigarros entre os dedos, e todas as certezas que ainda não tenho e as saudades que eu quero matar, eu ainda prefiro o primeiro.

Eu não sei se eu quero isso pra mim, entende? Eu sei, eu dormi por muito tempo, sonâmbula pelos espaços, sonhando acordada, me esforçando para manter os olhos fechados, eu sei, eu tô devagar. Eu queria ser mais que isso, eu queria ser melhor, eu queria ser minha própria versão idealizada, eu queria ser o que eu sou no quem dera. 

Quem dera se eu fosse outro corpo, outro rosto, outra mentalidade, mais maturidade. Quem dera se eu tivesse a força, a gana, a garra, quem dera se eu tivesse mais agilidade, que minhas costas não doessem, que minha visão não me falhasse. 

Isso não é pra mim, eu me afogo nos milhares de “e se…”. Meu pulmão se enche dessa água suja e tudo me arde, tudo me dói. Minha pele se arrepia em meio minhas piras de me imaginar em outra vida. Se eu fosse mais esforçada, sabe? Se eu fosse mais gente, mais viva…

Mais acordada. 

Eu dormi por muito tempo, mas ainda estou sonolenta, meus olhos semicerrados não aguentam essa luz toda, queria viver no escuro do meu quarto na caverna daqueles que já desistiram e deus me perdoe dizer, mas até disso eu sinto falta. 

O vazio faz falta, porque querer é perigoso. 

Eu morro de medo de palavras como esperança. 

Eu quero ser outra coisa, quero me derreter em um líquido abstrato e tomar nova forma, nascer de novo numa noite qualquer e ter outra cabeça, eu quero que meus neurônios se reorganizem até que eu tenha orgulho de mim. Até que outras pessoas tenham orgulho de mim, até que essa nhaca de fracasso saísse do meu corpo num banho quente. 

E se eu fosse gente? Eu vou me afundando nos “e se…” como quem afunda em areia movediça, como quem se debate só pra afundar mais. Como quem reza por outra carne, outros órgãos, outra vida. Isso não é pra mim, essa perfeição toda. E se fosse? E se eu alcançasse, e se eu chegasse lá? E se eu caminhasse para chegar lá? É preciso mover as pernas, é preciso se movimentar, e se eu fosse inspiradora, talentosa, e se eu causasse um sorriso só com um olhar? 

Quem dera eu pegasse nas mãos essas vontades que pairam por minha cabeça como nuvem carregada, que apenas ameaça chover e nada de água. Eu quero arrancar com as mãos, sentir na pele, tocar as ideias abstratas. Quem dera ser outra, quem dera ser melhor, quem dera um novo cérebro, uma personalidade mais potente. Quem dera sentir nos dedos, quem dera se entrasse na pele. 

Eu fico refém da linguagem, esperando que as palavras façam tudo por mim, as palavras engavetadas, que mofam nos armários, os livros inacabados e os poemas jamais cantados. Querendo que as palavras me guiem até esse paraíso por mim sonhado em noites insones. Esperando que as palavras me salvem de qualquer inferno particular que eu mesma construí. 

De tanto “quem dera” nada se deu. 

Nada cedeu

porque eu também não cedi. 

De tanta esperança engavetada, mofada, estragada no fundo da geladeira, eu apenas esperei virar outra. A minha versão ideal lá do mundo das ideias de Platão, eu queria arrancá-la de lá, fundir-me a ela. Ser outra. A escritora do mundo ideal, a mulher do mundo ideal, preenchida de vontade e orgulho do que é. Sequestrar essa eu do mundo ideal, colocar ela em meu lugar.

Eu me apeguei no “e se…” como um pedaço de madeira de um navio naufragado, como minha esperança de não me afundar, de não sumir, de não ser engolida pelas águas violentas que correm em minha própria cabeça. 

Na linguagem eu me aninhei, busquei abrigo, comida e água, busquei segurança. A linguagem, me ajudou até certo ponto, mas daqui em diante, meu bem…

“agora você se vira”

Eu assombrei os espaços, tropecei nas vontades, vomitei desejos que não caíram bem em meu estômago. Eu assombrei os espaços quando eu não me fiz ser enxergada. Me apeguei a cada palavra, quis que as frases tecessem uma corda até o mundo real, até o olimpo onde os vivos estão. 

Eu quis que minhas palavras falassem por mim, que alcançassem outras mãos, ouvidos e olhares, que me levasse até outros corpos, outras mentes. Depois eu entendi que eu deveria guiar as palavras, não o contrário. 

Sonâmbula pelos dias, eu as guiei pro lado errado. 

Querendo ser outra, caí num mar torpe de desejos não realizados, vontades afogadas. Querendo ser outra eu quis sair de minha pele, rasgar a carne no meio, e correr em espírito por aí, ser imaterial, evaporar no ar, se desintegrar em bilhões de partículas. Querendo ser outra eu boiei em mar aberto, sem nenhuma terra à vista. 

No desespero da sede, eu bebi a água salgada deste mar. No meu “quem dera” do tamanho do pacífico, confundi melhorar com me odiar. Mas isso não é pra mim, essa roupa desconfortável da autopiedade, esse tecido duro e áspero de pura inércia. Essas horas que correm por minha pele com suas garras afiadas, e eu só consigo boiar, inerte em ondas calmas, quarando no Sol a pino, sentindo a pele ressecar, queimar, esperando ser resgatada.

Quem dera eu fosse mais pró ativa. 

Quem dera eu abstrair essas coisas, quem dera a porra do pensamento positivo, quem dera eu olhar pro espelho e gostar do que vejo, quem dera minha mente colaborasse mais comigo. 

Meu bem, é tão mais fácil falar. 

E se eu fosse gente, e se eu fosse gente que faz e acontece. Eu vejo as pessoas apenas fazendo e eu quero isso, eu juro que eu quero, eu só não consigo. 

No fundo do mar jazem esperanças naufragadas, esqueletos de desejos não realizados. No fundo deste mar são esquecidas as milhões de possibilidades, perdidas para sempre minhas mil e uma vontades, entre ser alguma coisa e não ser absolutamente nada, acabo sendo todo dia, por mim mesma, afogada.

As duas adentraram na festa, cumprimentaram a todos (ou quase todos), pegaram uma cerveja e sentaram-se no sofá, de canto. A festa estava cheia para o apartamento da anfitriã. Muitos rostos desconhecidos, muita gritaria e gargalhadas pairando no ar, junto do cheiro de cigarro e de maconha. Havia uma pequena neblina no apartamento e todos os rostos estavam sorridentes, no meio da sala, um homem e uma menina dançavam rockabilly estilo Jack Kerouac em On the road. Estavam em silêncio, haviam brigado no caminho para cá, e mal se olhavam na cara.
- Me empresta o isqueiro?
- Tó. - Juliana fez que não falaria mais nada, mas pensou melhor, daria o braço a torcer. - Você tem certeza que está em clima de festa?
- Eu não. Mas eu não quero ficar em casa, olhando pras paredes. O barulho ajuda a mente não pensar mais no problema.
- Esquece esse climão, pelo menos vamos tentar se divertir.
Larissa escorou a cabeça com a mão esquerda, com uma cara de dó, enquanto observava o céu escuro da vista da varanda. Pequenas estrelas brilhavam entre as janelas dos prédios e o céu era um pano negro que cobria São Paulo. Andava meio deprimida, e fazia mais de uma semana que não saída de casa, Juliana a arrastara para lá, para tentar melhorar o humor. Bom, era óbvio que não estava adiantando: não é divertido se divertir quando não se consegue se divertir. Ao seu lado, a amiga balançava timidamente os ombros ao som da música e sua franja balançava de um lado para o outro.
- Se você quiser ir embora, a gente vai, tá bom? Mas quem sabe não ajude mesmo. Dançar é bom para essas coisas.
Por “essas coisas” Juliana queria dizer a fase letárgica que ela estava tendo por esses dias. Ninguém ousava dizer a palavra certa: depressão. Talvez chamar a coisa como ela é, faça com que a coisa seja menos potente, seja opaca diante da realidade. Ela pensava que só precisava aguentar algumas horas, não beberia muito, não usaria outras drogas, talvez tentasse absorver um pouco dessa alegria que pairava sob todas as outras pessoas da festa. Talvez a alegria adentrasse pelas narinas como cheiro da fumaça e assim como fumaça, impregnasse em suas roupas, cabelos e até na própria pele.
Claro, não queria ficar com essa cara de bunda a noite toda, então se esforçava também: mexia os pés com a batida do som, balançava a cabeça enquanto fechava os olhos. Pensou que o som das gargalhadas altas adentrando seus ouvidos, era um pouco agradável. Queria sentir tudo isso. Olhou à sua frente, dois homens se beijavam carinhosamente no meio da sala, bem no meio da pista de dança, bem na hora que as luzes se apagaram e foi ligado um jogo de luzes coloridos que fazia o beijo ter vários tons diferentes de cores primárias.
- Eu ainda me surpreendo com gente que consegue flertar em festas hoje em dia. - Juliana diz, olhando para os dois que dançavam e se beijavam sem cansar.
- Só a ideia de flertar no geral, já me dá preguiça.
- Acho que é porque a gente não está ali no meio.
- Eu sei que eu não sou do tipo que estaria ali no meio. Mas se estivesse não seria pra ficar com ninguém.
- E aquela fase sua? Você direto estava saindo “barra” transando com algum cara…
- Ju, olha essa bagunça toda. - ela apontou para si mesma. - E ainda envolver homem nisso… Não é uma boa. Acho que empapucei. A maioria dos caras são iguais essa festa: você sai esperando um momento de profunda diversão e intimidade e volta sem nada para casa.
- Bom, profunda intimidade e festa muito boa não é fácil de achar. A gente tem que ir em algumas festas ruins e encontros rasos para saber disso.
- Mas não está na cara? Eu sabia, quando saí de casa hoje que não deveria ir a lugar nenhum. Acho que preciso de coisas mais tangíveis, menos passageiras…
- Uma festa não é lugar para isso.
- Eles estão se divertindo.
- Eles não estão se sentindo como você ou estão fingindo muito bem, bicha.
- Você tem essas coisas? Sentir que a alma sua envelheceu demais e tudo isso, que nós jovens deveríamos aproveitar, simplesmente perde o sentido? Eu parei de sair com esses caras porque eu sempre me via voltando para casa meio vazia, e triste ou apenas entorpecida. As poucas vezes que algo ultrapassou a pele não durou mais que algumas semanas. Acho que quero honestidade.
- Você tem alma de artista. Artista tem essa coisa de buscar por algo profundo.
- Mas querer conexões humanas reais não é só coisa de artista.
- Não, mas artista geralmente consegue admitir isso.
- Bom, eu só sei que excluí o tinder.
Juliana se levantou para dançar, bem a frente de sua amiga. Ria enquanto rodopiava e mexia o quadril, ainda segurando a lata de cerveja em uma mão e um cigarro na outra. Mal olhando para as outras pessoas da festa, ela constantemente fazia gestos para que Larissa levantasse do sofá, que negava o tempo inteiro, balançando negativamente, a cabeça. Vendo a amiga dançar, Larissa pensou que certas profundidades estavam agora longe de seu alcance. Todo o resto da festa ficou embaçado atrás da amiga que há dias tentava lhe animar seja lá como for. Sentia que certas urgências da juventude não mais lhe cabia, pelo menos, não neste momento, onde seu espírito parecia ser muito mais velho que o corpo. Como se tentasse, constantemente se encaixar em lugares que não foram feitos para ela. Ainda sim, sorriu ao olhar Juliana, alegre e disposta.
- Viu só? Você sorriu!
- Porque você é otária.
- Querida, certas profundidades estão aqui. - fez um gesto, apontando para as duas. - Acho que a gente quer muito o que a gente não tem. Mas eu sei lá, se o que a gente não tem é necessário.
- Acho que não é. A gente quer mesmo assim. Mas, você tem razão. Fodam-se as festas.
- E os homens.
- E o tinder.
- E a depressão.
- Vamo embora?
- Tem um boteco na esquina que fica aberto até as 3, o litrão é barato.
Certas profundidades estavam longe de seu alcance, outras estavam bem alí.

Se algum dia soube me expressar em palavras, aconteceu há muito tempo atrás, pois já não me cabe saber falar sobre tantos sentimentos. Acabo pensando que cartas de suicídio pode conter mais sentimentos que algo que eu decida dizer ou escrever. Suponhamos que ainda eu saiba me expressar, quer dizer que entendo sobre o que sinto? Creio que não. Há muitos anos que não me permito debruçar sobre papéis e chorar versos ou até mesmo textos sentimentais ali. Espero que nesse momento, através dessa pequena resenha que fiz até aqui para desbloquear meus pensamentos e meu dom adormecido, algo faça sentido, porque faz algum tempo que nada mais é como antes.

- l, stefani.

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